O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, dezembro 23, 2023

A SEXUALIDADE CODIFICADA PELA SOCIEDADE

UMA VOZ DIFERENTE


Em meu artigo de 2020, Disrupting the Story: Enter Eve, lembro-me de como, desde o início, meu trabalho foi reconhecido como um “pertubardor”. Eu estava pertur bando uma história sobre o desenvolvimento humano que não parecia verdadeira. Levei mais tempo do que imaginei para chegar às seguintes três frases que falam diretamente sobre o que têm sido as principais fontes de confusão em torno do meu trabalho, incluindo a questão de gênero. 
1. A voz diferente é uma voz humana 
2. A voz da qual ela difere é uma voz patriarcal 
3. Em uma sociedade ou cultura patriarcal, uma voz humana é uma voz de resistência. Meus estudos de desenvolvimento e a descoberta de que a iniciação ao patriarcado normalmente começa mais tarde para meninas do que para meninos (na adolescência, em vez de no final da primeira infância) destacam por que as vozes das mulheres têm sido tão informativas para o meu trabalho e continuam a ser politicamente relevantes – o que também explica o contínuo investimento nos silêncios das mulheres ou as pressões sobre as mulheres para não dizerem ou mesmo saberem o que “realmente” pensam e sentem. Em suma, embora a “voz diferente” seja uma voz humana, as vozes das mulheres continuam a ser críticas para trazer à tona a tensão entre a democracia (baseada na voz igual) e o patriarcado (que privilegia as vozes dos pais).

A QUESTÃO DA HETERO E DA HOMOSSEXUALIDADE COMO FACTORES SOCIAIS - resultantes das forças capitalistas, consumistas e tecnológicas que caraterizam a nossa sociedade atual.

A heterossexualidade é um terreno mais privilegiado do que a homossexualidade para estudar esta questão, por uma série de razões. Na sua forma atual, a heterossexualidade se fundamenta sobre as diferenças de géneros que tendem a funcionar como desigualdades de género; a heterossexualidade, por sua vez, organiza essas desigualdades em um sistema emocional que outorga o sucesso ou fracasso das relações à psique das pessoas, especialmente das mulheres. A liberdade permite que as desigualdades emocionais passem inadvertidas e fiquem sem ser atendidas. Tanto os homens como as mulheres - no entanto mais as mulheres - recorrem a sua psique para manejar a violência e as feridas simbólicas que derivam dessas desigualdades emocionais: “Porque ele está distante?”, “Será que pareço necessitada em demasia?”, “Que deveria fazer para conquistá-lo?”, “Quais erros cometi para que ele tenha me deixado?”. Todas essas perguntas, formuladas por mulheres e para mulheres indicam que as mulheres heterossexuais sentem-se culturalmente inseguras e em inferioridade...

Em contraste, a homossexualidade não traduz o género em diferencia nem a diferencia em desigualdade, nem está baseada na divisão entre o trabalho biológico e económico em função do género que caraterizou à família heterossexual. Daqui deduz-se que os efeitos da liberdade nas relações heterossexuais resultam mais urgentes como (texto indecifrável) … já que a interação da liberdade sexual na estrutura ainda omnipresente e poderosa da desigualdade entre géneros multiplica as contradições e as crises da heterossexualidade. Ainda mais, dada a estreita regulação e codificação da heterossexualidade segundo o sistema social do processo, que supostamente conduzia ao matrimonio, o desvio para a liberdade emocional e sexual permite que compreendamos com maior nitidez o impacto de liberdade nas práticas sexuais, assim como as contradições que pode ter criado esse tipo de liberdade com a instituição do matrimonio (ou do casal), entorno ao qual segue girando a heterossexualidade.

No entanto, a homossexualidade foi até faz pouco tempo uma forma social clandestina e oposta. Daí que se definiu, desde a origem, como uma prática de liberdade, e em contraste com a instituição doméstica do matrimonio como alienação das mulheres e atribuições das funções patriarcais ao homens. Em consequência, esse livro pode ver-se como uma etnografia da heterossexualidade.

A homossexualidade moderna representa a conquista histórica da liberdade sexual e a sua encarnação moral, porque em contraste com a homossexualidade grega, não organiza nem naturaliza a desigualdade (não é um recurso que um homem utiliza para exercer o seu poder sobre um homem mais jovem ou sobre um escravo).

 

DESAMOR  

A sexualidade contemporânea (ainda que também inclua alguma entrevista com pessoas homossexuais) que como instituição social, lutou contra as pressões simultaneamente emancipadoras e reacionárias, modernas e tradicionais, subjetivas e reflexivas, resultantes das forças capitalistas, consumistas e tecnológicas que caraterizam a nossa sociedade atual.

O meu enfoque da liberdade emocional e sexual contrasta com diversas formas da ideologia libertária que vem o prazer como cortina da experiência, e interpretam a formidável expansão da sexualidade em todos os âmbitos da cultura consumista como um auspicioso sinal de que - na mordaz enunciação de Camille Paglia - a cultura popular (e o seu conteúdo sexual) são na verdade “uma erupção do paganismo jamais derrotado em Ocidente”, 34

Os libertários sexuais consideram que a sexualidade mediada pelo mercado de consumo liberta o desejo, a criatividade e as energias sexuais, e fomenta o feminismo (e, presumidamente a outros movimentos sociais) ao abrir-se à “arte e ao sexo em todos os seus mistérios escuros e nada reconfortantes”. 35

Essa conceção é sedutora, porém baseia-se no ingénuo suposto segundo o qual as forças do mercado que subjaz à cultura popular canalizam realmente e acompanham energia criativa, em lugar de (por exemplo) difundir os interesses económicos das grandes corporações que promovem uma subjetividade baseada na satisfação das necessidades.

Não encontro razões convincentes para qualificar as energias aproveitadas pelo mercado como naturalmente “pagãs” em lugar de, por exemplo, reacionárias, conformistas ou confusas.

Tal como o enuncia um importante teórico (palavra incompreensível) Margaret Thatcher e Ronald Reagan, defensores dos valores familiares, na verdade abriram a porta à revolução sexual mais importante que se tenha sabido através de la desregulação dos mercado que produziram as suas políticas liberais: 36

 “A liberdade individual não pode servir de freio no mercado; se temos liberdade absoluta para comprar e vender, porque não fazer da mesma forma na eleição dos nossos pares sexuais, nosso estilo de vida sexual, nossa identidade ou nossas fantasias?"2 37
CAROL GILLIGAN

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