O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, agosto 02, 2015

A DITADURA DO ORGASMO

"O tesão e consequentes orgasmos - múltiplos, por favor! - devem permear todos os nossos movimentos, seja nos exercícios abdominais, na consulta médica, na faxina do banheiro, na troca do pneu do carro, nas dores do parto, nas reuniões modorrentas, seja no sexo – lembrar que transar menos de uma vez por dia implica fracasso, segundo se sabe lá quem."


orgasmo.jpg

Novelas, seriados, magazines, filmes, outdoors, programas televisivos, anúncios publicitários, entre tantos outros meios midiáticos, são vitrines diárias e ininterruptas de modelos físicos e de personalidade que atendem a um ideal surreal, incondizente com a realidade da esmagadora maioria dos reles mortais. Magros, cabelos sedosos, bem vestidos, dentes brancos, bons de cama, bem resolvidos, bem remunerados, tais são os estereótipos que inundam nossas vidas de penúria e esgotamento nervoso.
Desde crianças, meninas brincam com barbies esquálidas, de traços delicados e sorriso constante estampado no rosto, enquanto os garotos sonham em se tornar os super heróis com músculos definidos e incólumes aos problemas da vida. O adolescente - coitadinho - desajeitado, tentando lidar com as mudanças físicas e hormonais que não entende e invadem sua vida sem pedir licença, é obrigado a se comparar com as personagens de Malhação, muitas delas protagonizadas por artistas que já saíram há tempos da puberdade – como se identificar com imagens distantes anos-luz do reflexo que se enxerga no espelho?
É trepidante o choque de realidade a que temos que nos submeter, quando percebemos ser impossível correr atrás de todo aquele vigor físico e obter a propalada aparência hollywoodiana, enquanto gastamos horas em transporte público para chegar ao trabalho estafante de mínimas oito horas diárias, cuidamos das contas, da casa, das roupas sujas, das horas extras, do serviço levado para o lar – e ninguém parece estar a fim de nos preparar para isso. Soma-se, ainda, a essas disparidades, o agravante de muitas das personagens televisivas pautarem suas ações por atitudes que fogem à ética e aos escrúpulos desejáveis na vida em sociedade. As implicações nocivas da deformidade de caráter neutralizam-se, nesses casos, sob uma aparência deslumbrante e charmosa, supervalorizando-se, assim, os valores estéticos, em detrimento dos valores morais, sobrepondo-se a beleza física à dignidade e ao caráter.
A separação clara entre mocinhos e bandidos torna-se, pois, cada vez mais tênue, como que nos convidando à transgressão de valores éticos para se obterem os prazeres do consumo e da vida fácil e o sucesso inerente a tudo isso – pois a arte imita a vida, e vice-versa. Como se vê, essa garotada precisa é ser conscientizada, com urgência, nos sofás da sala e nos bancos escolares, de que vida real não é novela, magreza excessiva não é saúde, maldade não é aceitável, sucesso não é salário, sexo não é esporte.
Não obstante, essa perfeição física atrela-se a uma felicidade perene e obrigatória. Tudo e todos tentam nos convencer de que ser feliz sempre e a qualquer custo é uma obrigação, um fim a ser atingido diariamente. Deve-se acordar cantarolando, trabalhar com um sorriso de bochecha a bochecha, convalescer de uma doença com alegria contagiante, menstruar sem indisposição e, se possível, usando uma calça branca, estar sempre com tesão, pois sem tesão, nada de orgasmo – sacrilégio! Aliás, o tesão e consequentes orgasmos - múltiplos, por favor! - devem permear todos os nossos movimentos, seja nos exercícios abdominais, na consulta médica, na faxina do banheiro, na troca do pneu do carro, nas dores do parto, nas reuniões modorrentas, seja no sexo – lembrar que transar menos de uma vez por dia implica fracasso, segundo se sabe lá quem.
Nesse contexto, deve-se procurar o prazer em tudo, sempre, loucamente. É feio xingar, maldizer, mandar tudo às favas, não estar a fim de transar, não estar motivado, estar de saco cheio, uma vez que o yin e o yang não podem se desarmonizar – cuidemos de nossos chacras. É imperativo gozar. Por isso, não raro, na impossibilidade de alcançarmos o sucesso que nos vendem como verdadeiro, acabamos gritando por socorro indevidamente, por meio de falsas soluções escapistas oferecidas pelas pílulas, pelas drogas, pelo consumo desenfreado, pela banalização do amor, pela morte em vida e, nos casos mais extremos, pelo suicídio.
Na verdade, queremos tão somente ter o direito a não nos tornarmos prozacs ambulantes. É preciso que nos deem licença para fazermos cara feia e reclamarmos quando a situação assim o exigir. Queremos poder, às vezes, não conversar, não sorrir, tampouco atingir orgasmos sem prazer algum. Os homens podem, sim, chorar e as mulheres não precisam ficar esperando pelo príncipe encantado, visto que o grande amor de suas vidas muito provavelmente será um plebeu de tanquinho indefinido e grana curta, como eu, como você, enfim, como noventa e nove vírgula nove por cento da humanidade do lado de cá da telinha e das telonas. Porque, fato inconteste, a tristeza e o fracasso também nos definem e completam.


in Sociedade por Marcel Camargo
***
O comentário de um homem lúcido - LUIS TOBIAS

O texto em questão aponta para a "cultura do orgasmo".
Aqui se identifica e expõe o imediatismo a que a sexualidade está sujeita hoje.
Uma vez mais a Mulher é exposta como um objecto de prazer, relegando para últimos planos todas as suas característic
as de género e de SER HUMANO.
No meu trabalho, ainda em curso, tive oportunidade de falar e aprofundar este tema com mulheres muito jovens.
Fiquei seriamente surpreendido e preocupado quando me apercebi que na maior parte dos casos, não era a cumplicidade, nem o afeto que punham como prioridade.
Era o orgasmo.
E aprofundando conclui que essa ideocincresia era "comprada" nas TVs, nos filmes, na WEB, nas revistas, em fim, na própria família, onde aprendiam com a mãe a fingir orgasmos, para satisfazer a sede de domínio patriarcal.
Felizmente também encontrei o contrário. Ou seja, a consciência da sua própria condição, que embora sujeita ao "falocratismo" social, se revela como uma ferramenta indispensável para-a viver de forma equilibrada e libertadora.


 

4 comentários:

Anónimo disse...

Eu não costumo levar a sério homens que criticam a sexualidade feminina do alto do seu machismo patriarcal.

Nunca vi nenhum desses senhores assumir que a sexualidade doentia que hoje vemos padronizada na sociedade, a dicotomia de dominador/superior/homem e mulher/inferior/submissa foi criada por eles. Sempre prontos a criticar e apontar erros nas mulheres, calam-se diante dos seus privilégios patriarcais sexuais que criaram e mantem a prostituição, a pornografia, a pedofilia, bdsm e o incesto. Nem por um momento questionam o porquê de se acharem no direito de realizar todas as suas fantasias de dominação, mesmo as mais torpes, sem nunca se preocupar com os danos que tais práticas causam ás mulheres e crianças.

Que tal criticar o fato de homens velhos se relacionarem com mulheres 20, 30, 40 anos mais novas? Que tal se horrorizar com o fato de a maioria dos abusos sexuais contra crianças acontecer dentro das famílias e são cometidos pelos próprios pais? Que tal criticar a prostituição, que incrementa o tráfico de mulheres e crianças? Que dizer da pornografia, que trata mulheres como lixo sexual a ser usado e abusado para que homens assistam e se masturbem? Sabia que a exploração de crianças na pornografia é o tipo mais procurado hoje em dia por aquelEs que usam mecanismos de buscas na internet? Falar sobre isso, se indignar com isso? Nem pensar. Vamos criticar as mulheres, porque nem ao orgasmo devem ter direito. Só devem ser passivos meios para os homens conseguirem sua satisfação sexual.

Entendo que hoje há uma exacerbação da obrigação de se fazer sexo e que as mulheres acabam sendo também influenciadas por isso, mas sei que essa exacerbação serve e é protagonizada pelos homens que donos das tvs, das produtoras de filmes e etc inventam a cada dia, novos modos de explorar as mulheres e ganhar muito dinheiro. Os homens poderosos ganham dinheiro e os homens comuns se locupletam com a desvalorização da sexualidade feminina.

Não, não me venham com essa história de que as mulheres são culpadas pela própria opressão ou abuso. Antes de nos apontar o dedo, vire-os para si próprios e questionem-se a respeito de como tratam as mulheres á sua volta. Questionem a sua própria sexualidade.

rosaleonor disse...

Apesar de ter achado o texto bastante curioso e até plausível, nõa posso deixar de estar totalmente de acordo consigo - todos os aspectos que aponta são sem dúvida muito bem observados e eu já tenho destacado alguns. No entanto achei, como disse, este texto apontada apenas a uma realidade de que as mulheres muito novas são vitimas, e estando de acordo com aspectos interessantes. Mas olhando do seu ponto de vista e indo ao fundo da questão tem toda a razão no que diz mas eu nõa vi que fosse apontado a mulher a culpa...apenas agora vejo claramente a omissão habitual de onde parte a verdadeira culpa, tal como diz. Em geral não aceito nem publico textos de homens que defendam ou ataquem a sexualidade feminina e nõa gosto memso nada de os homens continuarem a falar sobre as mulheres...era tempo de falarem da sua culpa e não das mulheres, certo, mas estes aspectos aqui focados tem muita pertinência nos dias de hoje, admitindo que passei ao lado das questões que apnta aqui no seu comentário.
Agradeço imenso a sua clareza e lucidez e se não se importa publicarei o seu comentário...
rleonor

Anónimo disse...

Sim, eu entendi, mas é que fico mesmo aborrecida quando vejo homens questionando as mulheres e nunca questionando o sistema de valores que eles implantaram e que levam a essa situação que hoje enfrentamos.
Gosto de ler textos de mulheres falando sobre mulheres, porque me soa como uma, vamos dizer assim, irmã falando a outra irmã. Nós podemos falar umas ás outras, porque nós sabemos o que é ser mulher no patriarcado. Já passou da hora dos homens reconhecerem que o desequilíbrio em todas as esferas que hoje enfrentamos é de responsabilidade deles, quando quebraram a harmonia que havia entre o masculino e o feminino; porque eu acredito havia esse equilíbrio e que os homens o quebraram quando resolveram dominar e possuir tudo.

rosaleonor disse...

Também gosto e dou sempre preferência a textos escritos por mulher quase exclusivamente - só muti raramente algum texto ou comentário de um homem me agrada...Sim, "Gosto de ler textos de mulheres falando sobre mulheres, porque me soa como uma, vamos dizer assim, irmã falando a outra irmã." Este é o propósito deste blog...
grata
rlp