O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, fevereiro 06, 2021

A LÚCIDA VISÃO DE OLGA TOKARCZUK



A VOZ AUTÊNTICA DAS MULHERES

“É por isso que os tiranos de todos os matizes, servos infernais, têm um ódio tão arraigado pelos nómadas - é por isso que perseguem os ciganos e os judeus e obrigam todos os povos livres a se estabelecerem, atribuindo-lhes os endereços que servem como sentenças.
O que eles querem é criar uma ordem congelada, falsificar a passagem do tempo. Querem que os dias se repitam, imutáveis, querem construir uma grande máquina onde cada criatura seja forçada a tomar o seu lugar e a realizar falsos actos. Instituições e escritórios, selos, boletins informativos, a hierarquia e classificações, graus, aplicações e rejeições, passaportes, números, cartões, resultados de eleições, vendas e acumulação de pontos, coleta, troca algumas coisas por outras.
O que eles querem é localizar tudo no mundo com a ajuda de códigos de barras, rotular todas as coisas, deixar claro que tudo é mercadoria, que isso é quanto lhe vai custar. Que esta nova língua estrangeira seja ilegível para os humanos, que seja lida exclusivamente por autómatos, máquinas. Assim, à noite, nas suas grandes lojas underground, eles podem organizar a leitura da sua própria poesia em código de barras.
Move-te. Vai em frente. Bendito seja aquele que parte. ”

(tradução de Mariana Inverno )


“This is why tyrants of all stripes, infernal servants, have such deep-seated hatred for the nomads - this is why they persecute the Gypsies and the Jews, and why they force all free peoples to settle, assigning the addresses that serve as our sentences.
What they want is to create a frozen order, to falsify time's passage. They want for the days to repeat themselves, unchanging, they want to build a big machine where every creature will be forced to take its place and carry out false actions. Institutions and offices, stamps,newsletters, a hierarchy, and ranks, degrees, applications and rejections, passports, numbers, cards, elections results, sales and amassing points, collecting, exchanging some things for others.
What they want is to pin down the world with the aid of barcodes, labelling all things, letting it be known that everything is a commodity, that this is how much it will cost you. Let this new foreign language be illegible to humans, let it be read exclusively by automatons, machines. That way by night, in their great underground shops, they can organize reading of their own barcoded poetry.
Move. Get going. Blessed is he who leaves.”


― Olga TOKARCZUK, in "Flights"
Prémio Nobel da Literatura 2019


Sem comentários: