O COMETA
Sem mais nem menos, ocorreu-me uma poderosa ideia bizarra: a
de que somos seres humanos por esquecimento e desatenção e que, em verdade, a única
e verdadeira realidade é sermos criaturas apanhadas numa grande batalha cósmica
que talvez dure há séculos e que não se se sabe se ou quando acabará. Tudo o
que vemos não passa de reflexos dessa realidade que se assoma no sangrento
nascer da Lua, nos incêndios e nos vendavais, na queda das folhas congeladas de
Outubro, no voo de pânico da borboleta, na pulsação irregular do tempo que
prolonga as noites infinitamente e se detém abruptamente ao meio-dia. Eu sou,
portanto, um anjo ou um demónio enviado para a confusão de uma vida com uma
missão que se cumpre a si própria ou que eu de todo esqueci. Este esquecimento
faz parte de uma guerra, é a arma do outro lado, que me atingiu e me feriu,
deixando-.me a sangrar e temporariamente fora de jogo. Por conseguinte, não sei
quão poderosa ou fraca eu sou, não me conheço a mim mesma, porque não me
recordo de nada e, por isso, também não ouso encontrar em mim essa fraqueza ou
esse poder. É um sentimento extraordinário – saber que algures no fundo somos
alguém completamente diferente que sempre imagináramos. Mas tal não traz
inquietação e, sim, alivio, porquanto aquela fadiga, que estava presente a cada
momento da vida, cessa.
Passado pouco tempo, aquele sentimento poderoso apagou-se,
levou sumiço perante imagens concretas: a porta aberta do vestíbulo, as cadelas
adormecidas, os operários que vieram de madrugada e ergueram um muro de pedra.
In CASA DE DIA CASA DE NOITE
OLGA TOKARCZUK - PREMIO NOBEL DA LITERATURA
3 comentários:
Tou a ler te sempre 😃 Bom dia 😸😸
este trecho diz tudo de nós...abraço
Pois é, por isso dos últimos q aqui puseste escolhi cumprimentar te neste. Abraço. Ainda bem que te conheci. Ainda bem. Ainda bem.
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