O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

segunda-feira, setembro 13, 2021

ANJO OU DEMÓNIO

 



O COMETA

 Sem mais nem menos, ocorreu-me uma poderosa ideia bizarra: a de que somos seres humanos por esquecimento e desatenção e que, em verdade, a única e verdadeira realidade é sermos criaturas apanhadas numa grande batalha cósmica que talvez dure há séculos e que não se se sabe se ou quando acabará. Tudo o que vemos não passa de reflexos dessa realidade que se assoma no sangrento nascer da Lua, nos incêndios e nos vendavais, na queda das folhas congeladas de Outubro, no voo de pânico da borboleta, na pulsação irregular do tempo que prolonga as noites infinitamente e se detém abruptamente ao meio-dia. Eu sou, portanto, um anjo ou um demónio enviado para a confusão de uma vida com uma missão que se cumpre a si própria ou que eu de todo esqueci. Este esquecimento faz parte de uma guerra, é a arma do outro lado, que me atingiu e me feriu, deixando-.me a sangrar e temporariamente fora de jogo. Por conseguinte, não sei quão poderosa ou fraca eu sou, não me conheço a mim mesma, porque não me recordo de nada e, por isso, também não ouso encontrar em mim essa fraqueza ou esse poder. É um sentimento extraordinário – saber que algures no fundo somos alguém completamente diferente que sempre imagináramos. Mas tal não traz inquietação e, sim, alivio, porquanto aquela fadiga, que estava presente a cada momento da vida, cessa.

Passado pouco tempo, aquele sentimento poderoso apagou-se, levou sumiço perante imagens concretas: a porta aberta do vestíbulo, as cadelas adormecidas, os operários que vieram de madrugada e ergueram um muro de pedra.

 

In CASA DE DIA CASA DE NOITE

OLGA TOKARCZUK - PREMIO NOBEL DA LITERATURA

3 comentários:

Vânia Jones disse...

Tou a ler te sempre 😃 Bom dia 😸😸

rosaleonor disse...

este trecho diz tudo de nós...abraço

Vânia Jones disse...

Pois é, por isso dos últimos q aqui puseste escolhi cumprimentar te neste. Abraço. Ainda bem que te conheci. Ainda bem. Ainda bem.