por José Saramago
À escritora colombiana Laura Restrepo, nossa amiga pelo coração e pelas ideias, encarregou-lhe Médicos sem Fronteiras que viajasse ao Iémen para depois contar o que lá tivesse visto, ouvido e sentido. O relato dessa experiência foi agora publicado no El País semanal, uma reportagem impressionante como, em princípio, qualquer outra que se faça em África, mas que a arte de narrar de Laura, ao recusar, como é próprio da sua natureza de escritora, os efeitos emotivos de uma escrita que intencionalmente apelasse à sensibilidade do leitor, prefere expressar por uma obstinada procura de realidade directa ao alcance de poucos. As descrições da chegada dos barcos que vêm da Somália sobrecarregados de fugitivos que esperam encontrar no Iémen a solução das dificuldades que os empurraram para o mar são de uma rara eficácia informativa. Vêm neles os homens, as mulheres e as crianças do costume, mas Laura Restrepo não tarda a mostrar-nos como é possível falar de homens sem estar obrigado a falar das mulheres e das crianças que com eles vieram, mas que das crianças seria impossível falar se não se falasse também, e sobretudo, das mães que os trazem, às vezes ainda na barriga. As situações em que essas mulheres vão encontrar-se depois de desembarcarem no Yemen, constituem um catálogo completo das humilhações morais e físicas a que estão sujeitas só pelo facto de terem nascido mulheres. Por trás de cada palavra escrita por Laura há lágrimas, gemidos e gritos que seriam capazes de nos tirarem o sono se a nossa flexível consciência não se tivesse acomodado à ideia de que o mundo vai aonde querem os que o dominam e que para nós já será bastante cultivar o nosso quintal o melhor que soubermos, sem que tenhamos de preocupar-nos com o que se passa do outro lado do muro. Esta, sim, é a mais velha história do mundo.
josé saramago
hoje in DN.pt
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