CARLA LONZI:
A DIFERENÇA COMO PRINCÍPIO EXISTENCIAL
Carla Lonzi é provavelmente a pensadora feminista frente à qual as múltiplas almas do feminismo italiano reconhecem unanimemente uma dívida (ZAMBONI, 2014). Nascida em Florença em 1931, morreu aos 51 anos. A partir dos anos setenta se dedicou integralmente ao feminismo, abandonando uma brilhante carreira como crítica de arte. Junto com Carla Accardi e Elvira Banotti fundou o coletivo “Rivolta Femminile” (Revolta Feminina) e uma editora ligada ao grupo: “Scritti di Rivolta Femminile” (Escritos de Revolta Feminina). O Manifesto di Rivolta Femminile5 (LONZI, 2010), caracterizado por frases breves e incisivas, expressa a consciência da opressão sexista, conduzida com o auxílio de todo tipo de ideologia – do cristianismo como do marxismo – e por meio de explicações baseadas tanto na natureza quanto na cultura. Ao mesmo tempo, afirma a convicção de que a libertação das mulheres não pode acontecer através da imitação do modelo masculino. “Libertar-se para a mulher não significa aceitar a mesma vida do homem – o que é insuportável – mas expressar o seu próprio sentido da existência”6 (Ibid., p.6; tradução nossa). Nesse sentido, a diferença feminina não é compreendida como um conjunto de traços que caracterizam a especificidade das mulheres em contraposição ou complementarmente ao homem, mas sim como um princípio existencial, baseado no exercício da liberdade. A diferença envolve as maneiras do ser humano, a peculiaridade de suas experiências e do seu sentido da existência. Essa é a ideia central que fundamenta a perspectiva do feminismo praticado por Rivolta Femminile e que retorna em vários escritos elaborados por Carla Lonzi individualmente ou com a Rivolta Femminile.
(…)
A busca da independência da mulher e a superação do seu vínculo com o mundo masculino estão profundamente ligadas à prática da autoconsciência introduzida na Itália por Rivolta Femminile, a partir da experiência das feministas norte-americanas. Em Significato dell'autocoscienza nei gruppi femministi10 (Ibid.), esclarece-se que a autoconsciência possibilita às mulheres se assumirem como sujeitos e seres humanos completos, para além do mito da realização de si através da união amorosa com seu opressor. Neste sentido “o feminismo começa quando a mulher busca a ressonância de si na autenticidade das outras, porque compreende que a única forma de reencontrar a si mesma, é no interior de sua própria espécie11” (Ibid., p.120; tradução nossa). Essa passagem revela a possibilidade da ação criativa feminista e abre para horizontes desconhecidos.
Particularmente La donna clitoridea e la donna vaginale12 (Ibid.) manifesta uma nova compreensão, fruto da autoconsciência. Nesse texto, Carla Lonzi questiona muitos mitos sobre a sexualidade feminina, criados pela projeção masculina e frequentemente baseados em uma visão binária, que contrapõe a passividade, a receptividade, a monogamia da mulher ao ativismo, à agressividade e à poligamia do homem. Na verdade, esses mitos são sustentáveis somente no interior de um modelo sexual baseado no prazer vaginal, que “não é o mais profundo e completo para a mulher, mas é o prazer oficial da cultura sexual patriarcal”13 (Ibid., p.82; tradução nossa). De fato, a vagina é uma zona moderadamente erógena que se tornou o sexo feminino por excelência só por causa da sua complementaridade ao sexo do homem. Neste sentido, o coito é o “primeiro ato de violência e disparidade hierárquica entre os seres”14 (Ibid., p.100; tradução nossa). Ao contrário, o amor clitoriano é assumido – na relação heterossexual como na homossexual – como expressão de uma sexualidade feminina autêntica e autônoma, desprendida das ilusões emotivas da integração com o outro, não subjugada à autoridade patriarcal e não vinculada à procriação.
A RADICALIDADE TRANSFORMADORA DA DIFERENÇA. UMA LEITURA SITUADA DE ALGUNS TEXTOS DO FEMINISMO ITALIANO
Mariateresa Muraca e Rosanna Cima
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