O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, julho 26, 2020

UM BOM RETRATO DE PORTUGAL



A REGENERAÇÃO PORTUGUESA,
OUTRA VEZ...

 "De tantos em tantos anos, Portugal entra num período de regeneração, normalmente à custa de dinheiro emprestado ou dado. É ...um período recheado de gloriosos planos de desenvolvimento, de metas e objetivos, de simplificações da administração e da reforma de sistemas corruptos, obsoletos ou burocráticos. O partido do poder encara esta regeneração como uma oportunidade única de transformar uma civilização miúda e orgulhosa com 900 anos que desde o século XVI aprecia viver à sombra da bananeira, a imperial e a europeia. Tivemos o ouro do Brasil, os fundos de coesão e os negócios escuros de Angola.

Num ápice, passamos de insetos predadores a vespas hiperativas que constroem o ninho com a saliva transformada em papel. Há insetos assim, mas não somos uma destas espécies laboriosas.

A frase mística é: já cá canta o dinheirinho. Um ou dois discursos líricos compõem a práxis política, e avançamos para os amanhãs que cantam, onde o conformismo e atavismos se dissolvem na luz da eminência económica. Há definições que nunca se gastam. “Plano de recuperação”, “momento histórico”, “problemas estruturais”, “gestão da crise”, “reforma do Estado”. As entidades dizem que “conseguimos um bom acordo” e congratulando-nos muito.

Vi isto com Cavaco Silva, quando jorravam os milhões da Europa e se construiu a armadura de betão, vi isto com Guterres, quando a economia portuguesa crescia tanto que se organizavam grandes e pequenos “eventos” (o “evento” começou aqui) todas as semanas e se gastava sem amanhã, vi isto com Sócrates e a expansão económica para combater a crise do subprime cinco minutos antes da bancarrota. Não vi com Barroso nem Santana porque nada fizeram enquanto estiveram lá, um abalou para mais verdes pastagens e o outro foi despedido. Vejo isto com António Costa, que se mata a trabalhar. Nos bastidores, vejo também uma quantidade de gente, sempre a mesma ou familiares, compadres e descendentes, esfregando as mãos e pensando em usar o dinheiro para comprar a segunda residência, o segundo carro de luxo, extorquir o subsídio, fundar a empresa-fantasma, fantasiar sobre planos de requalificação profissional e planificar a digitalização tipo Web Summit. Todos os espertalhões do país estão já a congeminar um plano para justificar o direito ao dinheiro e à subvenção, ao fundo e ao maneio.

São momento de exaltação, que duram até ao próximo escândalo financeiro ou judicial. Ou até à próxima desilusão. Entretanto, os comboios portugueses estão a cair de podres, as estradas estão vazias, os portos estão a ser secretamente oferecidos à China, a TAP não vale um pataco, as redes energéticas estão vendidas, os impostos são punitivos, o SNS entrou em disrupção, os salários são miseráveis, a periferia de Lisboa é uma favela infetada, a desigualdade foi, é e continua a ser a maior da Europa Ocidental. E o carro mais vendido durante o confinamento covid foi o Porsche.

De vez em quando, passa por mim um carro de vidros fumados com batedores e posso atestar a qualidade e o brilho de espelho da carroçaria, que os motoristas mantêm com brio. Uma reunião política no Largo do Rato (PS) ou na Buenos Aires (PSD) é uma oportunidade para verificar a excelência da frota. Embora o partido de fora do poder seja penalizado. Eu, cidadã comum, para o meu velho veículo nem o dístico de residente consigo, porque a expedita EMEL sabe multar em série, mas avariou com a covid e não renova dísticos nem responde online exceto por uma linha sucinta a dizer, “os seus documentos foram submetidos com sucesso”. Depois de 30 tentativas falhadas para os submeter. A password não entra, o sistema acusa erro, vai abaixo, regressa, vai abaixo, acusa erro, pede para irmos embora e regressarmos dentro de momentos, “tente mais tarde”. Vou colocar um cartaz no carro a dizer “dístico de residente pedido há um mês e não recebido, favor não multar”. É preciso pedir por favor e ter cuidado com a EMEL.

Nada como a sociedade digital. O meu cartão do cidadão caducou, o sistema falhou, não responde ao telefone e vai abaixo no agendamento final. No aeroporto, sabemos que os testes a passageiros nacionais e estrangeiros com residência em Portugal, vindos de países PALOP ou dos Estados Unidos, existem, são obrigatórios e devem ser feitos na origem ou excecionalmente aqui, mas não podem ser executados porque não há pessoal suficiente e as filas alongam. A gente que recusa não pode ser obrigada porque a lei não prevê a recusa de entrada a cidadãos com residência em Portugal, apesar dos abundantes despachos e diplomas da coisa. A DGS, que recebe as notificações do SEF sobre os passageiros sem teste, para os localizar, não comenta. A DGS só comenta o essencial, por exemplo, a final da Champions.

O jornal interrogou o ministério da Administração Interna sobre a contradição entre a legislação e a realidade, o ministério deu uma resposta oficial e vaga. Os cidadãos com residência em Portugal não podem ter a entrada barrada, logo, com teste ou sem ele, entram. Esqueça-se o teste, são formalismos impossíveis de pôr em prática. Isto é só para inglês ver, ou melhor, para inglês não ver agora que os ingleses nos rechaçaram. Repare-se que somos o país que inventou a frase. Isto é para inglês ver. A língua portuguesa, atropelada pelo Acordo, essoutra inesgotável futura fonte de progresso e desenvolvimento e de trocas frutíferas com o Brasil e Angola, os ricos PALOP, é uma tradutora do nosso sentimento.

São exemplos da distância que vai entre a decisão e a execução, entre a fantasia e a realidade. Agora prometem-nos a Loja do Cidadão Digital, quando a outra, a Loja do Cidadão, um dos marcos do desenvolvimento simplex, gere uma ineficiência desde a nascença. Experimentem os balcões da Segurança Social.

Lá vamos nós desembaraçar o país do passado, reformar as instituições e agitar as altas questões. O rapaz da Web Summit deve estar a encomendar mais camisolas irlandesas, e mais caras, para vender à rapaziada. Portugal é um filão para estrangeiros com imaginação e iniciativa. Na moda, existem várias marcas de grande sucesso na Europa que são fabricadas no norte, matérias-primas e mão de obra portuguesa, têxteis de excelsa qualidade. Em anos e anos de subsídios à moda, fomos incapazes de criar uma marca autónoma internacional. Uma marca portuguesa em vez de dinamarquesa, espanhola ou italiana.

Temos um espírito moderno, isso é que importa. Perdoem-me se não fico entusiasmada com mais um plano de regeneração. Se não fosse a covid, os restaurantes estariam cheios de comensais bem regados combinando esquemas e salivando sobre “a pipa de massa”. Desta saliva não sai papel."

Clara Ferreira Alves, Jornal Expresso, 25/07/2020

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