O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

terça-feira, janeiro 19, 2021

A COMPAIXÃO QUE NOS FALTA...

 





VALE A PENA LER...

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"Um velho tem tantas coisas de criança, incluindo a impaciência e a lágrima fácil. Depois de anos de repressão das emoções por uma cultura que não as aprecia, os velhos choram com facilidade. Mesmo que finjam que não choram. Uma parte dessas lágrimas acresce ao conjunto de indignidades da velhice, o olho húmido perpétuo, outra parte deve ter a ver com a desinibição, e uma terceira com a certeza de que tudo se torna tão difícil com a idade, desde descascar uma laranja a desrolhar uma água das pedras. Os ossos perderam a força e a pele engelhada recusa ficar com tudo a cargo. O corpo deixa de responder às mais pequenas coisas, numa teimosia que obriga a pedir ajuda para atravessar dois metros quadrados.
O poeta T. S. Eliot tem um poema enigmático, “The Love Song of J. Alfred Prufrock”, de 1917, poema do tempo da guerra e da peste, em que Prufrock pergunta se ousará perturbar o universo, se ousará comer um pêssego. E sabe que ao envelhecer enrolará a dobra das calças. “I grow old… I grow old…/ I shall wear the bottom of my trousers rolled.” Tantas interpretações críticas sobre esta “Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”. Para mim, e este é o poema preferido, o que aprendi de cor desde que o li a primeira vez, nunca houve outra interpretação. O poema da despedida, o poema do fim das coisas, do fim do amor e do amor do corpo, o poema da memória dilatada pela lucidez, o poema da vida medida em colherinhas de café, a vida de alguém que ouviu o canto das sereias, que não foi o príncipe Hamlet nem estava destinado a ser, e que no monólogo da gloriosa introspeção consegue reduzir as perguntas a uma. Ousarei perturbar o universo?
Ao contemplar os velhos do hospital, o medo dos corpos assustados com a novidade incompreensível da doença que gosta de atacar os velhos, os doentes, os pobres, os fracos, recitei o poema em pensamento. Os livros ainda dão consolo. O medo dos velhos, o medo daqueles olhinhos húmidos atrás das máscaras, analisando o espaço em volta e os perigos que o habitam, o medo dos monstros lunares e marcianos da ficção científica, o medo do que é estranho, é uma crueldade a acrescentar às outras. Não se trata já de enrolar as calças porque a altura diminui, ou de não conseguir comer um pêssego porque escorrega das mãos e os ossos não seguram os sólidos, trata-se de sobreviver à solidão a que este vírus condenou os velhos. A um terror vivido em solitário, atrás de vidros e de janelas e portas, atrás do escudo da proteção a que foram condenados. Conheço velhos que passaram a noite de Natal e a noite de fim de ano sozinhos nas casas. Muito pior do que ver um pêssego escapar das mãos. Pior quando a memória ainda segreda, foste em tempos uma pessoa inteira, tiveste poder sobre ti e sobre os outros, dominaste o mundo com a tua força, mediste a vida em colherinhas de café porque escolheste medi-la assim. E ouviste o canto das sereias. E sabes que não cantarão para ti, escreve Eliot.
Já tivemos outras pestes. No tempo da tuberculose, os doentes refugiavam-se e pensavam em solidão enquanto o mundo lá fora continuava composto. A tuberculose produziu obras-primas da literatura, como “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, e produziu mestres da escrita como Albert Camus, que quando teve tuberculose em novo passou o tempo a ler e assim se fez escritor. Deste vírus, não sairá o génio das artes. A tecnologia instituiu outras formas de comunicação e de pensamento, ou aboliu o pensamento. O telemóvel de última geração não salvará os velhos. Já ninguém lê livros. E a idade não deixa ler. Na solidão das salas e das casas, a companhia que lhes resta, no cansaço do dia, é a televisão. No hospital, no consultório, na espera, lá está ela, a luz azul acesa com pessoas dentro que falam com uma felicidade fingida, infantil, para alegrar os velhos.
Envelhecer assim
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Envelhecer assim
(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 08/01/2021) 

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