O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quarta-feira, outubro 14, 2015

Na quietude da noite, a Deusa sussurra...


TRANSCENDER O EGO...
 
Justamente porque o ego, a alma e o Eu (Self) podem estar presentes ao mesmo tempo, não será difícil entender o sentido verdadeiro de "ausência do ego" - expressão que tem causado imensa confusão. Ausência do ego não significa a ausência de um eu (self) funcional (o que seria próprio de um psicótico e não de um sábio); significa que não estamos mais exclusivamente identificados com aquele eu.

 Um dos muitos motivos de não sabermos lidar com a não ego  ou a  "ausência do ego"  que desejamos que nossos "sábios sem ego" satisfaçam as nossas fantasias relativas a "santidade" ou "espiritualidade", o que, habitualmente, significa que essas pessoas estejam mortas do pescoço para baixo, livres das vontades ou desejos da carne, eternamente sorridentes. Desejamos que esses santos não passem por todas as coisas que nos incomodam - dinheiro, comida, sexo, relacionamentos, desejos. "Sábios sem ego" estão "acima de tudo isso" - assim desejamos. Queremos cabeças que falem. Acreditamos que a religião bastará para livrá-los de todos os instintos básicos, de todas as formas de relacionamento, considerando a religião não como orientação para viver a vida com entusiasmo, mas sim, como guia para Evitá-la, reprimi-la, negá-la, fugir dela.

 Em outras palavras, o homem típico espera que o sábio espiritual seja "menos que uma pessoa", de alguma forma liberto dos impulsos confusos, difusos, complexos, pulsantes, compulsivos, que guiam a maior parte dos seres humanos. Esperamos que os nossos sábios sejam a ausência de tudo o que nos impulsiona. Queremos que não sejam sequer tocados por todas essas coisas que nos atemorizam, que nos confundem, que nos atormentam, que nos atordoam. É a essa ausência, a essa falta, a esse "menos que uma pessoa" que, frequentemente, chamamos "sem ego".

 Entretanto, "sem ego" não significa " menos que uma pessoa"; significa "mais que uma pessoa". Não pessoa menos, mas pessoa mais – isto são, todas as qualidades normais da pessoa mais algumas transpessoais. Pensemos nos grandes iogues, santos e sábios - de Moisés a Cristo, a Padmasambhava. Não foram desfibrados maneirosos, mas dinâmicos e instigantes - desde o episódio dos vendilhões do Templo até à imposição de novos rumos a nações inteiras. Lidaram com o mundo em seus próprios termos, não em termos de uma piedade melosa; muitos deles provocaram revoluções sociais significativas, que se estenderam por milhares de anos. E assim fizeram, não porque tivessem evitado as dimensões físicas, emocionais e mentais da humanidade - e o ego, que não é o veículo de todas elas, mas porque as assumiram com tal garra e intensidade que sacudiram as próprias fundações do mundo. Indiscutivelmente, estavam também intimamente ligados com a alma (o psiquismo mais profundo) e o esprito (o Eu informe) - fonte Última de sua força - mas expressaram essa força e tiraram dela resultados concretos, exactamente porque assumiram, decididamente, as dimensões menores através das quais ela poderia expressar-se de modo a ser sentida por todas as pessoas.

Esses grandes mobilizadores e agentes de mundana não foram egos pequenos; foram, na mais completa acepção do termo, grandes egos, justamente porque o ego (veículo funcional do domínio da mente) pode existir e de fato existe com a alma (veículo do sútil) e o Eu (veículo do causal). Na mesma medida em que esses grandes mestres mobilizaram o domínio da mente, eles mobilizaram o próprio ego, porque o ego é o veículo desse reino. Entretanto, não se identificavam meramente com seu ego (isso seria narcisismo); simplesmente perceberam seu ego conectado a uma fonte cósmica radiante. Os grandes iogues, santos e sábios conseguiram tanto, exactamente porque não foram temidos bajuladores, mas grandes egos ligados ao seu Eu superior, animados pelo puro Batman (o puro Eu - eu) que são um com Brahma; abriram a boca e o mundo estremeceu, caiu de joelhos e pode ver face a face o Deus radioso.

Santa Teresa não foi uma grande contemplativa? Sim, e Santa Teresa foi a Única mulher que reformou uma tradição monástica inteira (pensemos nisso). Gautama Buda sacudiu a Índia nos seus fundamentos. Rumi, Plotino, Bodhidharma, Lady Tsogyal, Lao Tsé, Platão, o Baal Shem Tov - estes homens e mulheres deram início a revoluções no mundo que duraram centenas, às vezes milhares de anos - coisa que nem Marx, nem Lenine, nem Locke, nem Jefferson, poderiam afirmar ter conseguido. E não agiram assim porque estivessem mortos do pescoção para baixo. Não, eles eram fantasticamente, divinamente grandes egos, ligados profundamente ao psíquico, que estava directamente ligado a Deus.

 Existe certa verdade na ideia do transcender o ego: não significa destruir o ego, mas, sim, conecta¡-lo a alguma coisa maior. Como afirma Nagarjuna, no mundo relativo, atman são real; no absoluto nem atman nem anatman são reais. Assim, em nenhum caso annatta corresponde a uma descrição correta da realidade. O pequeno ego não se evapora; permanece como o centro funcional da actividade no domínio convencional. Como eu disse, perder esse ego significa tornar-se um psicótico, não um sábio.

 "Transcender o ego", significa, pois, em verdade, transcender mas incluir o ego num envolvimento mais profundo e mais elevado, primeiro na alma ou psiquismo mais profundo, depois na Testemunha ou Eu superior e, então, dá-se a absorção nos níveis precedentes, envolver-se, incluir-se e abraçar-se na radiância do eu original, One Taste - o estado de visão não-dual ou consciência da unidade. Um Sabor. E isto não significa, portanto, "livrar-se" do pequeno ego, mas, ao contrário, habitar nele plenamente, vivê-lo com entusiasmo, usa¡-lo como veículo necessário, através do qual as grandes verdades podem ser transmitidas. Alma e esprito incluem o corpo, as emoções e a mente; não os eliminam.

Grosseiramente, podemos dizer que o ego não é uma obstrução ao Esprito, mas uma radiosa manifestação do Esprito. Todas as Formas não são senão o Vazio, inclusive a forma do próprio ego. Não é necessário livrar-se do ego, mas, simplesmente, vivê-lo com certa intensidade. Quando a identificação transborda do ego no Cosmos em geral, o ego descobre que o Atman individual é, de fato, da mesma espécie de Brahman. O Eu superior não é, em verdade, um pequeno ego, e, assim, no caso de estarmos presos ao nosso pequeno ego, a morte e a transcendência são necessárias. Os narcisistas são, simplesmente, pessoas cujos egos não são ainda suficientemente grandes para abraçar o Cosmos inteiro e, para compensar, tentam tornar-se o próprio centro do Cosmos.

Não queremos que os nossos sábios tenham grandes egos; nem sequer desejamos que exibam qualquer característica evidente. Sempre que um sábio se mostra humano - a respeito de dinheiro, comida, sexo, relacionamentos - sentimo-nos chocados, porque estamos planejando fugir inteiramente da vida, e o sábio que vive a vida nos ofende. Queremos estar fora, queremos ascender, queremos escapar, e o sábio que assume a vida com prazer, vive-a totalmente, pega cada onda da vida e surfa nela até o fim - nos perturba e nos assusta intensamente, profundamente, porque significa que não, também, devêramos assumir a vida com prazer, em todos os níveis, e não simplesmente fugir dela numa nuvem etérea, luminosa. Não queremos que nossos sábios tenham corpo, ego, impulsos, vitalidade, sexo, dinheiro, relacionamentos ou vida, porque essas são coisas que habitualmente nos torturam e queremos vá-las longe de nós. Não queremos surfar as ondas da vida, queremos que as ondas desaparecerem. Queremos uma espiritualidade feita de fumaça.

O sábio completo, o sábio não-dual está aqui para mostrar-nos o contrário. Geralmente conhecidos como "tântricos", estes sábios insistem em transcender a vida, vivendo-a. Insistem em procurar libertação no envolvimento, encontrando o nirvana no meio do ciclo contínuo de nascimento e morte. Samsara, encontrando a libertação total pela completa imersão. Passam com consciência pelos nove círculos do inferno, certos de que em nenhum outro lugar encontrarão os nove círculos do cau. Nada lhes é estranho porque nada existe que não seja Um Sabor.

 Na verdade, o segredo consiste em estar inteiramente à vontade no corpo e com seus desejos, com a mente e suas ideias, com o esprito e sua luz. Assumi-los inteiramente, plenamente, simultaneamente, uma vez que todos são igualmente manifestações do Um e unico Sabor. Vivenciar a paixão e vá-la funcionar; penetrar nas ideias e acompanhar seu brilho; ser absorvido pelo Esprito e despertar para a glória que o tempo esqueceu de nomear. Corpo, mente e esprito, totalmente contidos, igualmente contidos, na consciência eterna que é a essência de todo o espectáculo.
Na quietude da noite, a Deusa sussurra. Na luminosidade do dia, Deus amado brada. A vida pulsa, a mente imagina, as emoções ondulam, os pensamentos vagam. O que são todas estas coisas senão movimentos sem fim do Um Sabor, eternamente jogando com suas próprias manifestações, sussurrando mansamente a quem quiser ouvir: isto não é  você mesmo? Quando o trovão ruge, você não ouve o seu Eu? Quando irrompe o raio, você não é o seu Eu? Quando as nuvens deslizam mansamente no céu, não é o seu póprio Ser ilimitado que está acenando para você?

 Do livro One Taste, de Ken Wilber
 Tradudução e notas de Ari Raynsford

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