O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

terça-feira, abril 11, 2023

Falhados pensamentos e sistemas



Tudo transcende tudo;
Intimamente longe de si mesmo
E infinitamente, o universo
A si mesmo, existindo, se ilude.
Não é medo que faça estremecer
Nem olhar trás de si, nem recear
Inda que vagamente incoerentemente...
Não tão humano horror: Este é o horror
Do mistério, do incompreendido.
Ah, mas o estremecer do pensamento
É horroroso além de todo o horror.
Já estão em mim exaustas,
Deixando-me transido de horror,
Todas as formas de pensar (...)
O enigma do universo. Já cheguei
A conceber como requinte extremo
Da exausta inteligência que esse Deus,
Que ensinam as igrejas com aqueles
Seus atributos – (...)
(...) – existir realmente
Realmente existir e que houvesse
Mas fosse sonho, e não sonho nosso...
Sim cheguei a aceitar como verdade
O que nos dão por ela, e a admitir
Uma realidade não real
Mas sim sonhada como esse Deus cristão.
Mas isto, cuja ideia formidável
Cheia de horríveis possibilidades
Negra e profunda me (...)
A mente, abandonei, não sem tremer,
No caos do meu ser, onde jazem
Juntamente com ela espectros negros
De soluções passageiras, apavoradoras,
Momentâneas, momentâneos
Sistemas horrorosos, pavorosos,
Repletos de infinito. Formidáveis
Não só por isto mas também por serem
Falhados pensamentos e sistemas
Que por falharem só mais negro fazem
O poder horroroso que os transcende
A todos, infinitamente a todos.
Oh, horror! Oh, mistério! Oh, existência!
Para que lado não me virarei
Onde abrirei os olhos – olhos d'alma –
Que o mistério não me atormente, e eu
Não avance tremendo para ele?
E... Para que falar? O que dizer?
Tudo é horror e o horror é tudo!
Às vezes passam
Em mim relâmpagos do pensamento
Intuitivo e aprofundador
Que angustiadamente me revelam
Momentos dum mistério que apavora;
Duvidosos, deslembrados, confrangem-me
De terror que entontece o pensamento
E vagamente passa, e o meu ser volve
À escuridão e ao menor horror.
No sangue frio que nas veias minhas
Gira, no ar que sorvo, luz que vejo,
Circula, entra, nada-me uma dor;
E eu talvez à ternura outrora afeito
(Se o pensamento me não dominasse),
Sinto – como não sei – a alma mirrada
E pálida no ser.
Não é apenas, (...), o pensamento
Que assim me traz; é o pensamento fundo,
A consciência funda e absoluta
De todos os problemas minuciosos
Do mundo, trans-sentidos no meu ser.
Caminhamos sobre abismos
Ai de quem o sente. A noite, uma noite funda
Cerca-nos, ai de quem conhece
Como ela é funda, como é inescrutável.
Pulsam-me as veias
Alucinadamente e um terror novo
Obtém-me, o terror de mim mesmo.
Cidades, com seus comércios (...)
Tudo é mesmamente estranho, mesmamente
Descomunal ao pensamento fundo
Estranhamente incompreendido.
Tudo é mistério, tudo é transcendente
Na sua complexidade enorme,
Um raciocínio visionado e exterior,
Uma ordeira misteriosidade,
Silêncio interior cheio de som .
Do horror do mistério são talvez
Símbolos grosseiros esses horrendos
Górgona e Demógorgon fabulosos,
Fatais um pelo aspecto outro no nome.
Neles se vê a ávida ansiedade
De dar em concepção que torturasse
De terror, isso que de vago e estranho,
Atravessando como um arrepio
Do pensamento a solidão, integra
Em luz parcial (...) a negra lucidez
Do mistério supremo. É conhecer,
O erguer desses ídolos de horror,
A existência daquilo que, pensado
A fundo, redemoinha o pensamento
Por loucos vãos, declives de loucura
Despenhadeiros de aflição, confusos
Torturamentos, e o que mais d'angústia
E pavor não se exprime sem que falhe
Na própria concepção o conceber.
É o horror dos horrores esse horror
De haver d'alma um estado, aquele estado
Em que o mistério lhe penetra o abismo,
E não haver palavras ou ideias
Que atinjam esse estado ou comuniquem
D'ideias a ideias o que passa
De vago e horroroso. Do mistério
O pavor é duplo – é o horror em si
O horror que sentimos ao senti-lo.
Este que torna alegre e descuidosa
A loucura, ao seu lado, que ligeiro
Faz parecer tudo que de pavor
Confrange, ou (...), enlouquece,
Esta vacuidade angustiosa
Do pensamento prenhe – quando tento
Lembrar-me que a uma Coisa, Ser real
Corresponde – só essa ideia possível
Me gela a consciência de existir
E me entupe de pavor o fundo
Sentimento do mundo e de mim mesmo.

FERNANDO PESSOA, in FAUSTO


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