O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, abril 09, 2023

Genealogia do fanatismo



"Toda a ideia é neutra em si mesma, ou assim o deveria ser, mas a humanidade anima-a, projetando nela as suas chamas e as suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Nascem neste contexto as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.

Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos dos nossos sonhos e interesses. A História não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião as pessoas permanecem submetidas a esta; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adoptam-nos depois febrilmente: a sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. A sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: quem ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, com a esperança de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem a sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme a sua ideia em deus: as consequências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou dos seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor distinguem-se pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos-de-fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase... patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé - dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de urna verdade, da sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.
No momento em que nos recusamos a admitir o carácter intercambiável das ideias, o sangue corre... Sob as resoluções ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometeica de uma raça que se explode de tanto ideal, que explode sob as suas convicções e, que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça -vícios mais nobres do que todas as suas virtudes - embrenhou-se numa via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse... Nela as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo as suas consequências: reconstituirá o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de tê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo - tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror -, lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta... Só a ela escapam os cépticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque - verdadeiros filantropos da humanidade - destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada. Num espírito ardente encontramos o animal de rapina disfarçado, não poderíamos defender-nos demasiado das garras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro da nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém das suas verdades e dos seus arrebatamentos, quer fazer-nos compartilhar da sua histeria, do seu bem, impô-lo a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros seria um fenómeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. Observe ao seu redor: por toda a parte larvas que pregam; cada instituição traduz uma missão; os ministérios têm o seu absoluto como os templos; a administração, com os seus regulamentos - metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por solucionar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos actua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes procurava com a sua lanterna era um indiferente."

in Genealogia do fanatismo,
Emil Cioran

Arte
Cristo e Madalena, Arthur Hacker


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