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Carta de Fernando Pessoa à tia Anica
(1916)
"O fato é o seguinte. Aí por fins de Março (se não me engano) comecei a ser médium. Imagine! Eu, que (como deve recordar-se) era um elemento atrasador nas sessões semiespíritas que fazíamos, comecei, de repente, com a escrita automática. Estava uma vez em casa, de noite, vindo da Brasileira, quando, senti vontade de, literalmente, pegar numa pena e pô-la sobre o papel. É claro que depois é que dei por o fato de que tinha esse impulso. No momento, não reparei no fato, tomei-o como o fato, natural em quem está distraído, de pegar numa pena para fazer rabiscos. Nessa primeira sessão comecei por a assinatura (bem conhecida de mim) ‘Manuel Gualdino da Cunha’. Eu nem longe estava pensando em meu tio Cunha. Depois escrevi umas coisas, sem relevo, nem interesse nem importância.
De vez em quando, uma vezes voluntariamente, outras obrigado, escrevo. Mas raras vezes são ‘comunicações’ compreensíveis. Certas frases percebem-se. E há sobretudo uma coisa curiosíssima - uma tendência irritante para me responder a perguntas com números; assim como há a tendência para desenhar. Não são desenhos de coisas mas de sinais cabalísticos e maçónicos, símbolos do ocultismo e coisas assim que me perturbam um pouco. Não é nada que se pareça com a escrita automática da tia Anica ou da Maria - uma narrativa, uma série de respostas em linguagem coerente. É assim mais imperfeito, mas muito mais misterioso.
[...]
Guardo, porém, para o fim o detalhe mais interessante. É que estou desenvolvendo qualidades não só de médium escrevente mas também, de médium vidente. Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam a ‘visão astral’ e também a chamada ‘visão etérica’. Tudo isto está muito em princípio, mas não admite dúvidas. É tudo, por enquanto, imperfeito e em certos momentos só, mas nesses momentos existe.
Há momentos, por exemplo, em que tenho perfeitamente alvoradas (?) de ‘visão etérica’ - em que vejo a ‘aura magnética’ de algumas pessoas e, sobretudo, a minha ao espelho e no escuro, irradiando-me das mãos. Não é alucinação, porque o que eu vejo outros vêem-no, pelo menos um outro, com qualidades destas mais desenvolvidas. Cheguei, num momento feliz de visão etérica, a ver, na Brasileira do Rossio, de manhã as costelas de um indivíduo através do fato e da pele. Isto é que a visão etérica no seu pleno grau. Chegarei eu a tê-la realmente, isto é, mais nítida e sempre que quiser?
A ‘visão astral’ está muito imperfeita. Mas às vezes, de noite, fecho os olhos e há uma sucessão de pequenos quadros, muitos rápidos, muito nítidos (tão nítidos como qualquer coisa do mundo exterior). Há figuras estranhas, desenhos, sinais simbólicos, números (também já tenho visto números), etc.
E há - o que é uma sensação muito curiosa - por vezes a sentir-me de repente pertença de qualquer outra coisa. O meu braço direito, por exemplo, começa a ser-me levantado no ar sem eu querer. ( É claro que posso resistir, mas o fato é que não o quis levantar nessa ocasião). Outras vezes sou feito cair par um lado, como se estivesse magnetizado, etc.
Perguntará a tia Anica em que é que isto me perturba, e em que é que estes fenómenos - aliás, ainda tão rudimentares - me incomodam? Não é o susto. Há mais curiosidade do que susto, ainda que haja às vezes coisas que metem certo respeito, como quando, várias vezes, olhando para o espelho, a minha cara desaparece e me surge uma face de homem de barbas ou um outro qualquer (são quatro, ao todo, os que assim aparecem).
O que me incomoda um pouco é que eu sei pouco mais ou menos o que isso significa. Não julgue que é loucura. Não é: dá-se até o fato curioso de, em matéria de equilíbrio mental, eu estar bem como nunca estive. É que tudo isto não é vulgar desenvolvimento de qualidades de médium. Já sei o bastante das ciências ocultas para reconhecer que estão sendo acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer que o mestre desconhecido, que assim me vai iniciando, ao impor-me esta existência superior, me vai dar um sofrimento muito maior do que até aqui tenho tido, e aquele desgosto profundo de tudo o que vem com a aquisição destas altas faculdades. Além disso, já o próprio alvorecer dessas faculdades é acompanhado duma misteriosa sensação de isolamento e de abandono que me enche de amargura até o fundo da alma. Enfim, será o que tiver de ser.
Eu não digo tudo, porque nem tudo se pode dizer: Mas digo o bastante para que, vagamente, me compreenda.
Não sei se realmente julgará que estou doido. Creio que não. Estas coisas são anormais, sim, mas não antinaturais."
Fonte: http://br.groups.yahoo.com/group/zen_vergonha/
COPIADO DE http://holosgaia.blogspot.com/
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NOTA À MARGEM:
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É extraordinariamente sintomático que eu nunca tenha encontrado publicada em Portugal esta carta de F. Pessoa, nem em nenhum livro biográfico que eu tenha tido acesso, e a razão é bem simples: nenhum intelectual do sistema se aventurara a publicá-la nem mesmo os mais místicos com medo de rebaixar o poeta aum simples médiun*...e desse modo ele perderia o prestígio que angariou como poeta da pátria que o traiu sempre na essência e continua a servir-se dele sem o honrar verdadeiramente.
*Um verdadeiro Médiun do espírito, é um canal da transcendência, um inspirado...ou simplesmente um ser evoluído muito acima da nossa média...com mais sentidos despertos e faculdades que não desenvolvemos...porque o Sistema e a Religião os nega e impede o seu desenvolvimento...
rlp
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