O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quinta-feira, setembro 20, 2018

UMA TRISTE HISTÓRIA

UMA MULHER EXPOLIADA E TRAIDA - ROUBADA PELO MARIDO - A ESCRITORA María Lejárraga


Escreveu em silêncio, na solidão entre quatro paredes, longe dos aplausos para as peças que saíam de sua pluma. Seu nome é uma ausência, uma sombra, um vazio e uma história dolorosa. María de la O Lejárraga (San Millán de la Cogolla, 1874 - Buenos Aires, 1974) atravessou um século inteiro e foi uma dessas mulheres brilhantes e pioneiras da Idade de Prata da cultura espanhola. Romancista, dramaturga, ensaísta, tradutora, feminista e, no entanto, ausente das capas de seus livros. O nome que lemos é o de seu marido, Gregorio Martínez Sierra, que recebia elogios nas estreias de Canción de Cuna, El Amor Brujo e El Sombrero de Tres Picos, de Manuel de Falla, enquanto a autora e libretista esperava em casa.


Nestes tempos em que a história da criação parece estar reparando esquecimentos e variando a bússola do cânone oficial, a figura de María Lejárraga retorna com sede de justiça poética. A recuperação de seu nome na capa de sua obra é o reconhecimento a uma das mais destacadas a

Agora a editora Renacimiento publica Viajes de Una Gota de Água, uma coleção de histórias infantis que a autora publicou na Argentina em 1954, quando já vivia no exílio. Juan Aguilera Sastre e Isabel Lizarraga Vizcarra, especialistas na Idade de Prata, são os responsáveis pelo estudo introdutório e dois outros resgates editoriais: Como Sueñan los Hombres a las Mujeres e Tragedia de la Perra Vida y Otras Diversiones. Teatro del Exilio (1939-1974).


O reconhecimento era para o marido

Esta edição tem valor especial porque ela aparece com seu nome autêntico: María Lejárraga, como fez a autora, pela primeira e única vez em sua vida, no livro de estreia, Cuentos Breves, publicado em 1899. A irritação que provocou em sua família o fato de que seu nome aparecesse nessa primeira obra foi a razão pela qual ela decidiu se eclipsar.

Quando se casou com Gregorio Martínez Sierra, decidiu se esconder atrás do nome dele. Ambos formaram um dos casais artísticos mais produtivos da época. Gregorio era responsável pela direção das obras e quem ficava com a glória nas estreias. María aceitou esse papel de sombra, como Antonina Rodrigo apropriadamente intitulou sua biografia da autora: María Lejárraja, una Mujer a la Sombra.

Gregorio se ocupava da parte externa da parceria, mas era ela quem escrevia. Às vezes os ensaios eram interrompidos porque María estava escrevendo o último ato da obra assinada por Gregorio Martínez Sierra. Todos sabiam que Lejárraga era a "serviçal" de seu bem-sucedido marido. A tal extremo chegou esta situação que Gregorio fazia discursos feministas escritos pela mulher. Aí está o livro Cartas a las Mujeres de España, em que ela encoraja a liberdade e a independência feminina, embora seu nome não apareça em nenhum lugar. Apesar desse silêncio, Lejárraga chegou a ser deputada socialista na Segunda República, uma experiência que relatou em seu livro Una Mujer por los Caminos de España, escrito no exílio.



María Lejárraga e o marido em sua casa em Madri. ARCHIVO MANUEL DE FALLA

A história de Lejárraga tem um momento especialmente doloroso. Gregorio se apaixonou pela famosa atriz Catalina Bárcena, com quem teve uma filha. O casamento acabou, mas Lejárraga continuou a colaborar com o marido, escrevendo os livros que ele continuou assinando.

A grande decepção de Lejárraga veio em 1947 com a morte de Gregorio Martínez Sierra, quando a filha de Catalina Bárcena exigiu os direitos autorais do pai. María vivia com poucos recursos no exílio e foi então que reagiu e começou a publicar com seu nome, mas ainda refugiada nos sobrenomes do marido: María Martínez Sierra. E decidiu escrever suas memórias – Gregorio y Yo – onde revela em que consistia a colaboração. Uma obra na qual finalmente saiu do silêncio, embora de forma muito morna.

A filha da amante do marido ficou com os direitos autorais de suas obras

Viajes de una Gota de Água é um livro de melancolia, a lembrança dolorosa de uma exilada: “É um exercício de nostalgia alimentado pela frustração de sentir que seus livros eram proibidos na Espanha e que tampouco encontrava uma maneira de chegar os palcos espanhóis, onde apenas ocasionalmente sua produção anterior era reapresentada”, explicam Juan Aguilera e Isabel Lizarraga.

 (…)

in EL PAIS 

Sem comentários: