O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

segunda-feira, setembro 03, 2018

A tristeza abre uma porta ao mistério.


Sobre a tristeza

Se a melancolia é um estado de devaneio difuso que jamais conduz a uma profundidade ou a uma concentração intensas, a tristeza apresenta, ao contrário, um sério desdobramento sobre si mesma e uma interiorização dolorosa. Pode-se estar triste em qualquer lugar; mas, enquanto os espaços abertos privilegiam a melancolia, os espaços fechados aumentam a tristeza. Nesta, a concentração vem do fato de que ela tem quase sempre uma razão precisa, enquanto na melancolia não se pode apontar nenhum determinante exterior à consciência. Eu sei por que estou triste, mas não saberia dizer por que estou melancólico. Os estados melancólicos estiram-se no tempo sem que jamais ganhem uma intensidade particular. Tristeza e melancolia nunca explodem - nenhuma delas é capaz de atingir o indivíduo a ponto de abalar as fundações de seu ser. Fala-se frequentemente de suspiros, nunca de gritos de tristeza. Esta não é um transbordamento, mas um estado que se apaga e que morre. O que a singulariza de maneira extremamente significativa é sua aparição bastante frequente em seguida a certos paroxismos. Por que o ato sexual é seguido de abatimento, por que alguém fica triste após uma formidável embriaguez ou um desbordamento dionisíaco? Porque a energia dispensada nestes excessos somente deixa atrás de si o sentimento do irreparável e uma sensação de perda e abandono, marcados de uma forte intensidade negativa. Nós nos entristecemos após certas conquistas porque, ao invés do sentimento de ganho, provamos o de perda. A tristeza surge a cada vez que a vida se dissipa; sua intensidade equivale à importância das perdas sofridas; assim, o sentimento da morte é o que causa a maior das tristezas. Elemento revelador daquilo que distingue a melancolia da tristeza: jamais se qualificará um enterro de melancólico. A tristeza não tem qualquer caráter estético - caráter raramente ausente na melancolia. É interessante observar como o domínio da estética encolhe à medida que se aproxima das experiências e das realidades capitais. A morte nega a estética, tanto quanto a negam o sofrimento e a tristeza. Morte e Beleza - duas noções que se excluem mutuamente... Pois eu não conheço nada de mais grave, nem de mais sinistro, do que a morte! Como explicar o fato de que poetas tenham podido achá-la bela e celebrá-la? Ela representa o valor absoluto do negativo. A ironia nos dita que a temamos, ainda que lhe idolatrando. Sua negatividade me inspira - eu o confesso - admiração; é, no entanto, a única coisa que eu posso admirar sem amar. A grandeza e a infinitude da morte impõem-se a mim, mas meu desespero é tão vasto que ele me proíbe mesmo a esperança. Como amar a morte? Somente se pode escrever sobre ela exagerando o paradoxo. Quem quer que aspire a ter dela uma ideia precisa demonstra não ter um sentimento profundo, uma vez que ele a traz em si mesmo. Todo homem traz em si, não somente sua própria vida, mas também sua morte. No semblante de quem sofre intensa tristeza, leem-se tanta solidão e abandono que se questiona se a fisionomia da tristeza não apresenta a forma sob a qual a morte se objetiva. A tristeza abre uma porta ao mistério. E este é, por sua vez, tão rico que a tristeza não cessa de ser enigmática. Se uma escala dos mistérios fosse estabelecida, a tristeza entraria na categoria dos mistérios sem limites - inesgotáveis.


Uma constatação que posso verificar, para meu próprio pesar, a cada instante: somente são felizes aqueles que não pensam - ou, dito de outra forma - aqueles que pensam apenas o estrito necessário para viver. O verdadeiro pensamento se parece com um demônio que atormenta as fontes da vida, ou antes, com uma doença que afeta as suas próprias raízes. Pensar o tempo todo, colocar-se problemas capitais a cada instante e experimentar uma dúvida permanente quanto ao seu destino; estar cansado de viver, esgotado por seus pensamentos e por sua própria existência para além de todo limite; deixar atrás de si um rastro de sangue e fumaça como símbolo do drama e da morte do seu ser - isto tudo é ser infeliz a ponto de que o problema do pensar dê ânsias de vômito e a reflexão apareça como uma danação. Coisas demais são lamentáveis num mundo em que nada se deveria lamentar. Assim, eu me pergunto se este mundo realmente merece meu pesar.


Emil Cioran, in "Nos cumes do desespero".



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