Caminhamos desde há milénios sob o jugo do Grande Impostor...
"Contar-vos-ia a história do mundo, se a soubesse, falar-vos-ia da humanidade do princípio, caso dela existisse registo, dir-vos-ia os nomes dos deuses perdidos, se os houvesse aprendido. Por isso resta-me falar-vos do vento, das montanhas, dos mares, dos rios e das rochas, de tudo o que há de verdadeiro e de sagrado na Terra da qual somos parte.
Caminhamos desde há milénios sob o jugo do Grande Impostor; foi-nos dito que éramos a causa do mal, o cancro do planeta. Fomos divididos inúmeras vezes de inomináveis maneiras, aceitámos carregar o anti-heróico fardo do medo e da culpa sem questionarmos a sua origem ou propósito. Fomos enganados com promessas de paraíso por um secretariado pseudo-espiritual que actua na base de castigos e recompensas. Fomos escravizados pelo marketing bíblico, agora adaptado pela New Age, que continuamente nos vende a ideia de que o sofrimento é a via para uma suposta evolução, como se “evoluir” fosse um verbo aplicável ao infinito que somos, na eterna elipse do não-tempo, onde o passado e o futuro se unem num perpétuo agora. Naufragámos num mar de conceitos errados e de pura subversão, de torpes parábolas repetidas «ad nauseam» por mestres, padres e xamãs. Mas ainda aqui estamos, diante das rochas, dos rios, dos mares, das montanhas e do vento, diante dos símbolos do princípio do mundo até hoje ignorados.
“Sou aquela que caminha em todos os que caminham, e todos caminham em mim.” («Bruma numa Chávena»)
Os engenheiros do pecado demonizaram a alma da Terra, retiraram o poder às matriarcas e marcharem sobre as aldeias. Masculinizaram o Sol para através dele poderem reinar; silenciaram a Lua, que tudo vê lá de cima, para assim semearem a discórdia entre homens e mulheres. Por fim, instaurado o seu império de embustes, perseguiram parte da humanidade que não se deixou corromper pela luz fingida dos templos artificiais, nem intimidar pelos seus próprios reflexos distorcidos no espelho das religiões.
Procurei esta humanidade incorrupta nas páginas de incontáveis livros censurados, procurei-a à margem das leis de Saturno e das suas falsas verdades reveladas; procurei-a em sonhos, na vertigem dos momentos roubados a esse Cronos que nos mantém reféns de crenças e mitos. Procurei-a em mim.
O vento varre agora os cumes preguiçosamente, a erva agita-se indistinta acima do chão negro e húmido. Foi aqui que o mundo começou, na fertilidade dos sentidos que serpenteia pelas fragas nuas em busca de nutrição.
Trebopala, o riacho da aldeia, Trebaruna, a sua fonte, Ilurbeda, a mina dourada, Munidis, o monte, Broeneia, a chuva, Nabia, o vale suave, Ocrimira, o promontório escarpado, Iccona Loiminna, o astro luminoso, Drusuna, o bosque-templo, Fróvida, o rio selvagem, Lacipaea, o lago... As deusas da Ibéria de outrora nada nos impõem ou prometem, são o espírito da paisagem que habitamos. Anteriores ao tempo do Pai, são fruto do imaginal nascido de uma relação de amor entre essa humanidade esquecida e a Terra-Mãe. São o mais íntegro princípio da horizontalidade que não tolera hierarquias ardilosas de pendor fálico e punitivo. Mas não esperemos delas palavras bonitas, verdades óbvias ou frases de enfático consolo, pois só o logro se deixa nestes termos canalizar; não esperemos delas a salvação, porque só se salva quem primeiro se perde no caminho. Para a Grande Mãe Ctoniana jamais nos perderemos, porque todos os caminhos são o seu corpo. Não existe perdição.
Lilith, um nome maldito, tantas vezes exorcizado, outras tantas elevado à condição de deusa ou rainha, veio sumarizar tudo isto, não enquanto divindade, mas enquanto humanidade, a mais divina forma de manifestação cósmica.
“Sonha o rei um poder que não tem; sonha o camponês uma terra que sempre foi sua.”
(«O Grito da Coruja»)
Não, não somos o cancro do planeta, somos as suas filhas e filhos há muito iludidos por quem tenta vender-nos o que sempre foi nosso, por aqueles que um dia usurparam o nosso lugar no Cosmos e se apropriaram dos paraísos por nós sonhados. Somos os Pioneiros, invejados pelo deus-parasita que a troco da nossa energia finge salvar-nos do medo, da dor e da injustiça por ele próprio instituídos.
As sombras alongam-se no declinar das horas sobre as landes antigas. Lilith sibila-me ao ouvido segredos em flor, enigmas evolados do brilho das águas que correm soltas na sedução do devir. Escuto agora o clamor das aves que regressam aos ninhos; a memória ecoa num toque demorado, reconheço-a finalmente na curvatura das rochas sob o firmamento que eclode pouco a pouco na noite velha. Fecho os olhos, eis-me de volta ao início dos tempos, quando caminhava descalça pelas charnecas que jamais haviam conhecido o ferro, as exigências do homem, que jamais haviam sido espoliadas. Eis-me de volta ao silêncio gotejante das grutas, à profundidade das furnas onde o céu encontra caminho através dos rios de ar ululantes. A Serpente Telúrica sempre aqui esteve, corpo de terra, alma de gente, guardiã dos tesouros da humanidade indómita.
Constança
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