O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, março 13, 2022

A EXPERIÊNCIA DA INTERIORIDADE



A PSICOLOGIA COM ALMA E BELEZA

Ainda será possível nos tempos de hoje, final de século, onde os discursos neurobiológicos proliferam tentando capturar tudo o que possa ser da ordem do psíquico, falar de psicologia? Em tempos onde estes discursos apresentam suas sofisticadíssimas teorias da sinapse, teorias enzimáticas ou teorias neuronais, faz sentido ainda usar uma palavra como alma? Em tempos onde a depressão, outrora conhecida como melancolia ou como um estado afetivo regido pelo Deus Saturno é transformada em desequilíbrio químico no cérebro, é possível afirmar quea Beleza é fundamental para o psiquismo? Acreditamos que sim. Uma psicologia com Beleza e alma. É esta a proposta de James Hillman e da Psicologia Arquetípica.
Hillman que foi diretor de estudos do Instituto C.G.Jung em Zurique durante dez anos, é sem dúvida para muitos, mas não para todos, o mais importante e original pensador junguiano contemporâneo. É a partir de uma afirmação de Jung em seu livro "Tipos Psicológicos", onde este situa
a alma como um terceiro lugar entre as perspectivas do corpo e da mente que Hillman irá sustentar que a psicologia arquetípica baseia-se na alma, isto é, ela é um "esse in anima", um estar na alma.
Livre das tentativas de aprisionamento pelos métodos das ciências naturais, da metafísica, das psicologias das percepções e bases bioquímicas, a alma sustenta-se na imaginação e revela o que James Hillman denominou a base poética da alma. Privilegiar a alma significa retornar as imagens pois é assim que a psique se apresenta espontaneamente. Imagens são os dados básicos da vida psíquica, são o modo de acesso ao conhecimento da alma. Nada é mais primário na psique do que as imagens. Imagens são a psique na sua visibilidade imaginativa, conforme Jung
nos ensina ao afirmar que "todo processo psíquico é uma imagem e um imaginar". James Hillman irá propor uma psicologia da alma e da imagem. Irá decompor a própria palavra "psicologia" em "logos da psique" para re-significá-las como estórias ou discursos da alma através das imagens. Hillman recorre a um fragmento do filósofo Heráclito para apresentar sua psicologia:
"Por mais que caminhe em todas as direções, jamais descobrirás os limites da alma , tão profundo é o seu Logos."
Hillman comenta que neste fragmento, Heráclito une alma, profundidade, e a complexa palavra Logos numa única sentença, relacionando e tornando-as necessárias umas às outras.
 
O Logos da alma, a psicologia por excelência, na opinião de Hillman é a capacidade de penetrarmos na profundidade das coisas e de ouvirmos o que as imagens estão a nos dizer. Neste sentido, os analistas são transformados em mitólogos da psique, em estudiosos das narrativas da alma, pois um dos significados primeiros da palavra mitologia é narração de histórias. Todos aqueles que se juntam ao pensamento de Hillman unem-se em torno da importância destas duas palavras: alma e imagem.

Podemos perceber isto claramente quando Edward Casey, filósofo que contribui com a psicologia arquetípica, diz que imagem não é aquilo que vemos, mas sim como vemos. Para ver uma imagem não basta termos percepções. Algum processo psíquico deve se intrometer nesta atividade para que possamos dizer que estamos lidando com imagens e não com percepções. Este processo se chama alma.Para fundamentar sua psicologia , Hillman reutiliza a partição tradicional do ser em espírito-alma-matéria. A alma é concebida como um terceiro , um espaço intermediário entre o espírito e a matéria. Falar a partir da alma é criar um instante de reflexão , um intervalo entre as certezas tanto espirituais como materiais.
A psicologia arquetípica não se interessa em buscar verdades ou explicações. O que ela visa é tentar estabelecer uma relação psicológica com as idéias presentes no mundo. Um exemplo: das diferentes visões apresentadas entre matéria, espírito e alma quando das discussões surgidas quando surge por exemplo alguma imagem de Santa chorando. É um choro verdadeiro? Um milagre? A teofania que transforma o local em centro mundial de peregrinações? ( diriam os espiritualistas). Ou as lágrimas seriam apenas a umidade absorvida pelo material poroso que a Santa foi fabricada, expelida sob a forma de gotas? Charlatanismo? Exploração da ingenuidade dos fiéis? ( materialistas). Qual seria a posição da alma, consequentemente da psicologia?Se a alma é o que nos permite um olhar poético sobre o mundo, diríamos:
"vamos supôr que a Santa estivesse chorando, vamos imaginar esta possibilidade, vamos buscar respostas metafóricas para este choro".
Cada qual iria encontrar as suas, cada qual iria fazer a sua própria leitura da imagem da Santa chorando. É esta a perspectiva da alma, colocar a todos num modo ficcional, isto é, na capacidade de criarmos ficções e acreditarmos nelas. Capacidade esta que James Hillman denominou fé psicológica. Se a alma tem importância central na psicologia arquetípica, levando Hillman a estabelecer como objetivo do processo analítico o cultivo da alma, o mito básico que a informa e orienta é o de Eros e Psique.O mito se refere ao despertar da alma através do amor, reconhecendo a alma como fator interno que leva as profundezas aludidas por Heráclito. Através da atenção amorosa dada ao psiquismo, transferência é o seu outro nome, a alma começa a desenvolver-se e a fazer a sua revelação. O mito narra o que acontece entre as pessoas e dentro das pessoas. Mostra que o desenvolvimento da psique não ocorre num mar de rosas. Sofrimento, tortura, depressão, tentativas de suicídio são vivências fundamentais em todo o processo. Eros, o amor, é visto como um grande torturador e não como um querubim bondoso. O processo é árduo, difícil e cheio de obstáculos. O que caracteriza a experiência da alma para Hillman é o fato dela não abdicar de todo sofrimento que encontramos em nosso caminhar pelo mundo. Hillman não separa a experiência da alma de emoções e vivências das quais procuramos evitar: traição, suicídio,depressão, angústia, repetição, imobilismo, morte são temas estudados pela psicologia arquetípica , não em busca de sua cura mas em busca de suas retóricas. Porém o que é "alma" para a psicologia arquetípica?Alma é uma palavra que incomoda. Devido as suas conotações religiosas, falar em alma abala a psicologia naquilo que Hillman denominou "complexo de ciência", que leva à eliminação de importantes experiências psíquicas por não se encaixarem dentro de um determinado conceito de cientificismo. É importante lembrar que tanto Freud como Jung usaram a palavra alma ("seele" em alemão) para expressar a experiência da interioridade. Foi o tradutor oficial de Freud para o inglês quem contribuiu decisivamente para a diminuição do valor da palavra alma dentro da psicologia. Em vez de traduzir "seele" por "soul", preservando a formação romântica de Freud, escolheu optar por "mind", palavra de sonoridade acentuadamente científica.A palavra "mind" afasta-se do campo poético e religioso para fortalecer seus vínculos com o registro biológico. Fica então estabelecida a associação entre mente-cérebro-orgânico-concretude. Prova disso são os próprios cérebros concretos, fedorentos e desnecessários, levados às salas de aula nos cursos de psicologia.
a alma? Pode ela ser levada, mostrada e verificada em algum grau de concretude? A alma resiste a qualquer tentativa de conceituação com a intenção de fixá-la numa definição precisa.A principal característica da psicologia arquetípica é a sua posição re-visionista em relação a própria psicologia. Esta revisão se faz a partir do ponto de vista da alma. O trabalho da psicologia é oferecer um caminho e achar um lugar para a alma dentro de seu próprio campo. Hillman nos fala que cada área de conhecimento possui a sua raíz metafórica , o seu princípio básico de funcionamento. Se para a medicina a raíz metafórica é o corpo, para psicologia sua raíz metafórica é a alma.Podemos apresentar a alma como sendo um outro que se revela com seus desejos, que se expressa através do jogo fenomenológico das imagens com seu discurso que é , fundalmentalmente, metafórico.O que a psicologia arquetípica quer ressaltar é que a alma é uma perspectiva, não uma substância.É um ponto de vista em relação as coisas, um instante de reflexão entre pensamento e ação. Alma é o que torna possível a existência de significados, pois transforma eventos em experiências. Esta transformação se opera quando penetramos no interior dos eventos para que eles possam entrar em contato com o nosso interior.Por isso, tudo que toca a alma passa a assumir uma sensação de grande importância. A alma de qualquer coisa é sua parte mais fundamental e vital.Dizer que algo toca nossa alma é dizer que esse algo é fundamental.Um evento é uma vivência externa ,ao passo que uma experiência é uma vivência interna plena de significados, justamente por envolver a alma, que por sua vez nos conduz a um aprofundamento nesta mesma vivência.Alma e profundidade são inseparáveis, um dá sentido ao outro e vice-versa.Hillman reconhece os perigos da utilização da palavra alma. Corre-se o risco de ser substancializada, transformando-se numa espécie de ser invisível. Alma nos interessa no seu uso imaginativo, metafórico e retórico: alma como metáfora primária da psicologia arquetípica. Cultivar a alma é esta a proposta de Hillman, cultivo este que será construído passo a passo nas relações entre o ego e a alma. A alma será cultivada na medida em que o ego for se transformando num ego-imaginal, isto é, na medida em que aceite e aprende a conviver no Imaginal, a viver no mundo das imagens. A expressão para "cultivo da alma" em inglês é "soul-making" que numa tradução literal significaria "fazer alma".
Cultivar e fazer são verbos de ação que transmitem adequadamente a idéia de que deve haver um trabalho de construção para obtermos um sentido de alma. Porém, o verbo fazer é mais pertinente,visto que ele é a tradução da palavra grega "poiesis", poesia. Por este motivo, Hillman coloca seu trabalho sob o signo da retórica da poética, "o poder persuasivo de imaginar em palavras". Sua psicologia assume que a alma possui uma base poética e é a partir desta base que a alma cria suas ficções.A expressão "soul-making" foi retirada de um trecho de uma carta do poeta inglês John Keats:"chame o mundo, por favor, de vale de fazer alma,......descobrirás, então, para que serve o mundo." Ao utilizar esta expressão, Hillman revela que seu fazer é totalmente calcado no mundo, que a alma a ser cultivada não é apenas a "minha", encontrada no meu "interior", mas também a alma do mundo, ou seja, a alma dos carros, edifícios, negócios, doenças, esportes, televisões, transportes, tetos...Tudo é objeto para uma reflexão psicológica.Para cultivarmos a alma temos que estar no mundo, pois as imagens sobre as quais nos debruçamos pertencem a ele e não a nós. Para que ocorra o cultivo da alma é imprescindível que vivamos a vida inseridos no mundo, que não busquemos nada para além dele como nas disciplinas espirituais que negam ou desvalorizam o mundo, nem que busquemos algo para aquém dele como nas práticas psicológicas que se interessam unicamente pelos aspectos subjetivos. O movimento em direção à alma é um movimento de interiorização, um olhar para o interior das coisas. Porém esta interiorização não deve ser confundida como o interior do homem, mas sim o interior das coisas, de todas as coisas. Hillman resgata a antiga idéia neoplatônica de Anima Mundi, a alma do mundo, para mostrar que tudo possui alma, que em tudo é possível haver interiorizações. O olhar proposto pela psicologia arquetípica se assemelha ao olhar do poeta que percebe o mundo não como se ele fosse uma res extensa cartesiana, um mundo de objetos vazios. O olhar do poeta/psicólogo irá perceber o mundo como uma fonte inesgotável de imagens, interessando-se em descobrir a sua retórica. Perceber as imagens do mundo é fotografá-lo com a máquina do devaneio, devaneio no sentido de Gaston Bachelard. Sem devaneio, o mundo permanece imerso na escuridão, apagado, escondido e sem poesia.Em oposição à concepção do mundo como um lugar de objetos vazios, resgatamos a idéia de Anima Mundi, a alma do mundo, pela qual entende-se que cada coisa oferece a sua imagem através da sua forma visível e disponível para a imaginação. A idéia de Anima Mundi possui também conexões políticas fazendo com que a psicoterapia desloque o seu interesse com questões exclusivamente subjetivas para um interesse na psicoterapia do mundo. O mundo , agora, é o nosso verdadeiro paciente.Se o mundo se apresenta em formas, cores, cheiros e texturas faz-se necessário recuperar um senso estético.A intenção de Hillman é a de desenvolver um senso estético para a psicologia. Senso estético não se confunde com uma preocupação com o embelezamento. Hillman emprega a palavra estética no seu sentido grego de aiesthesis, percepção, qualquer coisa percebida é estética. O que Hillman está propondo é que a psicologia necessita de Beleza. Se concebermos a psicologia ainda como fundamentada na visão médica do comportamento humano e de sua vida emocional, o valor primário para ela será a noção de saúde. Porém se reinvidicarmos uma psicologia fiel as suas origens arquetípicas e etimológicas, isto é, uma psicologia à serviço da alma,então o objetivo do nosso trabalho, diferentemente da visão médica não será a saúde, mas sim a Beleza. Se concebermos a psicologia ainda como fundamentada na visão médica do comportamento humano e de sua vida emocional, o valor primário para ela será a noção de saúde. Porém se reinvidicarmos uma psicologia fiel as suas origens arquetípicas e etimológicas, isto é, uma psicologia à serviço da alma, então o objetivo do nosso trabalho,diferentemente da visão médica não será a saúde, mas sim a Beleza. Recuperar a Beleza como um propósito da psicologia é criar uma resposta estética para as coisas do mundo. O que queremos é uma psicologia estética que resgate uma relação sensual com as imagens. Uma psicologia animada pela Beleza é necessariamente uma psicologia que resgata a importância da percepção para a alma. Não à percepção dominada e aprisionada pelos laboratórios e dinâmicas psicologizantes que insistem em manter a dicotomia entre uma realidade psíquica constituída de sujeitos animados e uma realidade exterior composta de objetos inteiramente destituídos de alma. Queremos nos aproximar dos gregos e de sua noção de aiesthesis , palavra usada por eles para se referir à percepção. Aiesthesis significa uma reação de susto, espanto e surpresa frente as imagens apresentadas. Perceber não é mais uma operação do olhar regida pelo Logos da consciência. Ser fiel a noção de aiesthesis implica em poder deslocar o órgão da percepção do olhar para o coração. Privilegiar a Beleza é poder reagir com o coração ,despertá-lo de seu entorpecimento, muitas vezes provocado pelos ansiolíticos da vida moderna, e convocá-lo a assumir o lugar que lhe é devido. Para os antigos, o órgão responsável pela percepção era o coração, ele era associado as coisas do sentido. Tanto para os gregos como também na Bíblia o coração era o órgão da sensação e da imaginação. Se a sua função no mundo antigo era apreender imagens, perceber pelo coração é promover uma reação estética frente as imagens apresentadas pelo mundo. A palavra coração não deve ser entendida no seu sentido literal, devemos evitar o inimigo principal da psicologia que é o literalismo visto que o discurso da alma é e sempre será metafórico e poético. Não se trata do coração músculo ,menos ainda um coração que supostamente sedia os sentimentos pessoais. Trata-se de um outro coração, o coração da "vera imaginatio". O pensamento do coração não precisa estar ligado a experiências e vivências que o "eu" por acaso teve, pois o seu pensamento é imaginativo. O pulsar deste coração é ficcional, dele não brotam confissões subjetivas mas relatos objetivos sobre o mundo das imagens. Propor uma psicologia baseada na Alma, Beleza e no Coração é considerá-la menos um método de compreensão cognitiva e mais um modo de cultivar nossa sensibilidade estética, é operar um deslocamento significativo dos neuro-transmissores cerebrais para as imagens metafóricas do coração.Privilegiar o coração é se mover em direção ao reino da imaginação, movimento este que se faz psicológico por excelência.A psicologia arquetípica nos ensina a existência de um Deus em cada perspectiva ,em cada posição assumida por nós. Estamos sempre envolvidos dentro de uma fantasia arquetípica e de uma ficção mítica. Deste modo, buscamos que a psicologia se distancie serenamente de Apolo, Hera e Atená, deuses da razão, representantes dos princípios da consciência e do Logos e que ela venha se aproximar mais de Eros, Dioniso e Hermes, deuses ligados ao mundo dos mistérios e das transformações. Neste novo cenário, a psicologia inicia o seu culto a uma nova deusa e seu nome é Afrodite, a Deusa da Beleza para os gregos. Reconhecer a presença de Afrodite é reconhecer que cada coisa sorri, possui fascinação e provoca aiesthesis.
É Afrodite quem nos permite considerar o mundo não apenas como uma assinatura codificada para ser decifrada em busca de significados, mas o mundo como uma fisionomia a ser encarada, isto é, o mundo se apresentando sensorialmente como um rosto revelando sua imagem interior e sua disponibilidade para a imaginação.Com Afrodite percebemos o mundo em sua visibilidade, em sua diversa e infindável variabilidade de formas, cores, texturas, sons,...Perder a Deusa é cair num mundo seco e árido desprovido de imagens estéticas ,repleto de abstrações conceituais onde os deuses se tornam anônimos por perderem suas imagens, seus mitos e seus rostos.Afrodite é um imperativo para a psicologia e Beleza é sua necessidade.É importante ressaltar que quando falamos de Beleza ,estamos afastados de qualquer preocupação com embelezamento, nenhum critério artístico sobre o que é belo ou feio, nenhum julgamento acadêmico sobre o belo. Seguimos a tradição neoplatônica que concebe a Beleza como "pura manifestação", Beleza é a exposição de fenômenos. Ela não se localiza nem no sujeito, isto é, no olho do observador como também não está no objeto, onde a beleza é reduzida a formalismos conceituais.Queremos imaginar a Beleza como algo constitutivo do mundo, inerente a ele, Beleza como permanentemente dada, sempre à mostra em suas qualidades. E a esta Beleza que se refere Afrodite,a Deusa dourada e sorridente. É através dela que todos os outros deuses podem vir a se manifestar deixando de ser abstrações teológicas para poderem manifestar suas qualidades aos sentidos. Os deuses se desligam de sistemas conceituais metafísicos e encarnam nas coisas do mundo podendo serem vistos, ouvidos e sentidos. Os deuses revelam suas faces seja no sabor de um vinho, na cólera de uma discussão seja no delicado passeio dos dedos pelos cabelos de uma mulher. Na ausência de Afrodite, na supressão da Beleza, formas, fenômenos e deuses ficariam para sempre condenados a se ocultar , impedidos de realizarem suas aparições.É esta a noção de Beleza que interessa para a psicologia. Beleza regida por Afrodite como percepção sensorial ou aiesthesis , apostando na visibilidade do mundo e seus objetos e afirmando que a aparência é uma das formas da alma se revelar. Se o mundo só é possível de ser conhecido através de sua Beleza ,devemos sofisticar nossa percepção, aprimorar nossa aiesthesis. Devemos reeducar nossos olhos, mãos e ouvidos para obter uma nova sensibilização para os detalhes, para apreciar a singularidade com que cada evento se apresenta para nós. Nossa educação deve se voltar mais para a alma e a imaginação, retomar a noção de paidéia dos gregos e a formação humanista do homem renascentista. A alma requer estudos de história, antropologia, artes, literatura, história dos costumes, etc.Para os psicólogos, menos leitura de livros de psicologia e mais ensinamentos sobre como ler livros psicologicamente. A alma e Beleza se alimentam muito mais de quadros e esculturas de Salvador Dali,de filmes de Frederico Fellini, da literatura de Machado de Assis e de músicas de Caetano Veloso do que da pesquisa de comportamento de ratos em laboratórios, de estudos estatísticos ou de análise dos distúrbios de atenção na consciência. Hillman nos diz : "se você quer estudar Jung, não leia Jung. Leia o que Jung leu. Leia o "Fausto de Goethe" . Atualmente na psicologia só se lê psicologia. Ninguém lê literatura ou filosofia! Retornando a nossa deusa , afirmamos: perceber é o modo de conhecer o mundo e Afrodite é a sedução, a nudez das coisas como elas se revelam para a imaginação sensual.
Cultivar uma relação estética é nos aproximar-mos da inteligibilidade aparente das coisas, seus sons, seus cheiros e suas formas, falar através das reações de nossos corações, respondendo a olhares , tons e gestos das imagens entre as quais nos movemos. É este o nosso desejo: suspender a repressão a Beleza e convidá-la para retornar ao campo da psicologia. Uma psicologia com alma e regida por Afrodite, a deusa da Beleza, aquela que para os gregos mas também para nós , "possui o sorriso que torna o mundo mais prazeroso e amável". Trabalho difícil, apaixonado, árduo e laborioso. Porém, fundamentalmente, trabalho feito com alma em nome da Beleza. 

Marcus Quintaes


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