O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quinta-feira, julho 08, 2004



A AVIDEZ DO OUTRO

“A avidez do “outro” podia ser a forma mais benévola de mencionar a inveja. E chama mais a atenção o termo “outro” do que avidez, que é o substantivo, o sujeito. O que aqui se destaca adquirindo uma especial substantividade, é a referência ao “outro”.
(...)
A avidez pelo outro podia ser igualmente a definição do amor. Sem que possa ser nota distintiva o tormento produzido pela inveja, porque o amor, segundo as queixas dos que padecem, é tormento em sumo grau e, como a inveja, tormento que se alimenta a si próprio. Amor e inveja são processos da alma humana em padecer não produz qualquer atenuação; o padecer é o seu alimento.
A mesma definição, “avidez do outro”, parece adequar-se a este par de contrários que são inveja e o amor. A ambivalência do mundo do sagrado torna-se manifesta como sempre. E esta ambivalência é que precisa ser interpretada.
A avidez é própria de algo que precisa de crescer, crescer ou transformar-se, deixar de ser o que é; algo que se encontra num grau transitório, algo que é esboço do ser. Não sente avidez aquilo que tem entidade e repouso. A avidez é o chamamento no que ainda não atingiu o ser, e tende de alguma forma a adquiri-lo.
(...)
Avidez do “outro”, comunidade de amor e inveja, pelo menos num primeiro sentido, pois muito cedo no amor “o outro” se transforma em um. A inveja, em contrapartida, mantém obstinadamente a alteridade, sem permitir-lhe que toque na pureza do um.
E ao manter o outro, cresce a avidez que chega ao frenesim. O possuído pela inveja não pode renunciar a esse outro. Não há dúvida que no mais íntimo da sua vida, algo acontece que o mantém ligado a esse outro, estranho e mais eu que o seu próprio eu. Não se verá o invejoso a si mesmo a viver nele?
(...)
Mas a diferença entre a inveja e o amor parece estar na visão: o amor vê o outro como um; a inveja, como a que poderia ser tanto um como outro.”


In O HOMEM E O DIVINO - Maria Zambrano

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