O SORRISO DE PANDORA
“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja.
Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto.
Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado
Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “
In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam
sexta-feira, julho 16, 2004
A NOSSA PÁTRIA ESTAVA DEMASIADO LONGE PARA ROSAS
Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um Narciso cego, que gozasse a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e nocturna, segredada às emoções abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
Os teus colares de pérolas fingidas amaram comigo as minhas horas melhores. Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes. Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino? Era por o conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus lábios desistidos. A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas.
Nas cascatas dos nossos jardins a água era pelúcida de silêncios. Nas pequenas cavidades rugosas das pedras, por onde a água escolhia, havia segredos que tivéramos quando crianças, sonhos do tamanho parado dos nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras da cascata, na execução estática duma grande acção militar, sem que faltasse nada aos nossos sonhos, nem nada tardasse às nossas suposições.
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim.
O LIVRO DO DESASSOSSEGO - Fernando Pessoa
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