O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

segunda-feira, novembro 29, 2021

QUEM FOI Marguerite Porete?





Marguerite Porete foi acusada de heresia e queimada em Paris, em 1310. 


"Marguerite Porete foi uma mística medieval, procedente do Condado de Hainaut, cidade de Valenciennes, região do Reno e que, segundo consta, viveu entre a segunda metade do século XIII e início do século XIV. Marguerite teria sido uma beguina clériga, isto é, teria feito parte do Movimento Beguinal. Esse Movimento foi um movimento espiritual que se desenvolveu como alternativa de vida religiosa leiga na Renania e Países Baixos. As beguinagens começam aparecer no final do século XII e foram formadas por pequenas casas agrupadas. Eram comunidades de homens ou de mulheres que, conservando-se como leigos ou leigas, assumiam como promessa (e não voto) a pobreza, a obediência e a castidade. Essas comunidades estavam inseridas num contexto social urbano. As beguinas, como eram chamadas as mulheres que faziam parte dessas comunidades, viviam do próprio trabalho: tecelagem, bordado, costura, ensinamento de crianças e serviços de damas idosas. Do ponto de vista da espiritualidade, eram adeptas do evangelismo, perspectiva que se constitui a partir da emergência dos movimentos mendicantes no seio da experiência religiosa cristã e implica na vontade de conhecer textos bíblicos na sua literalidade, na liberdade de pregação, no amor à pobreza, na contestação do mundo e na valorização do estilo de vida mais que a doutrina. Essas mulheres eram também adeptas de práticas ascéticas. O movimento espiritual das beguinas permaneceu marginal, pois não obedecia a uma regra aprovada. As beguinas, que constituíam essas comunidades fora do controle institucional, passaram a despertar desconfiança e foram perseguidas pela Igreja oficial. A instituição das beguinas foi reprovada pelo Concílio de Viena (1311) que afirma, entre outras coisas, que essas mulheres se perdem em especulações loucas sobre a Trindade, a essência divina e outros dogmas e pontos da doutrina sobre os sacramentos. O livro de Marguerite Porete, Le Mirouer des Simples Ames, é um “espelho medieval”, uma instrução religiosa que, como outros “espelhos”, ilumina a vida moral ou espiritual. Mas não é só isso, é também, por outro lado, e isso torna o livro especialmente interessante, um romance de amor, um romance alegórico cortês depositário de uma cultura laica veiculada pela linguagem vulgar; um romance como outros que mistura os gêneros épico, cortês, alegórico e é escrito tanto em versos quanto em prosa. A obra constitui-se numa alegoria mística sobre o caminho que conduz essa alma à união perfeita com seu Criador e Senhor. O aniquilamento é seu grande tema e é descrito como o estado em que as almas simples adquirem a mais plena liberdade e o saber mais alto. A alma aniquilada, amorosa de Deus, Marguerite sempre reafirma, recebe mais saber do que o contido nas escrituras, mais compreensão do que a que está no alcance ou capacidade do trabalho humano de alguma criatura. A alma, sendo nada, possui tudo e não possui nada, vê tudo e não vê nada, sabe tudo e não sabe nada . Essa alma aniquilada é a que se torna capaz de experimentar a “paz de caridade”.
Não é a alma que mora no amor, mas o amor que mora nela, faz sua vontade por ela, opera nela e sem ela. A alma não compete. Aniquilando-se, entrega-se... experimenta uma indiferença radical. Já não pode mais falar de Deus. Se fala é por costume, bom hábito, ou por mandamento da Igreja. Se anuncia algo, faz sem paixão. Aquilo que pensa, fala ou faz é exclusivamente obra de Deus, o amor operando nela. Seu saber e seu fazer de alma aniquilada têm, paradoxalmente, autoridade divina. Da experiência de maior humilhação, emerge uma radical liberdade. Marguerite Porete foi acusada de heresia e queimada em Paris, em 1310. "


Retirado da tese "Marguerite Porete - Teóloga do século XIII"
de Ceci Maria Costa Baptista Mariani, 2008, São Paulo, Brasil



"Quando se fala em escrita de si na literatura, normalmente o foco de análise dos estudiosos são os escritores modernos ou contemporâneos. Dificilmente se aborda o tema a partir de autores medievais e, principalmente, a partir da literatura de autoria feminina na Idade Média. Posto isso, neste artigo, o objetivo geral é pensar, a partir de O Espelho das almas simples, de Marguerite Porete, a literatura mística de autoria feminina como escrita de si. O principal texto do artigo, como já dito, é o texto poretiano, subsidiado pelos estudos sobre a escrita de si – Foucault (1992), Lejeune (1994), Klinger (2007), Gomes (2004), Dalcastagné (2005) – e para o tema da mística como não-lugar será utilizado Certeau (2015), embora, naturalmente, outros estudos – sobre Marguerite Porete, a escrita de si, a mística, a literatura de autoria feminina – se façam presentes no decorrer do texto. O Espelho das almas simples é aqui lido sem preconceitos, como um texto escrito por uma mulher na Idade Média e considerado, dentre outras possíveis interpretações, como uma escrita de si e como o seu não-lugar é o lugar que lhe é próprio, pois, afinal, é o lugar de onde a escritora francesa fala."


Marguerite Porete, mística francesa do século XII, manifesta bem a “imediatez mediada” que caracteriza a mística cristã. “A mulher no mundo medieval, não tendo voz entre os doutores, vai encontrar o caminho da arte para expressão da experiência de Deus. Poesia, teatro, música serão maneiras encontradas para narrar o caminho de encontro com o Amado”, afirma Ceci à IHU On-Line. Em Marguerite, o aniquilamento é seu grande tema. É “fruto de um processo que implica várias mortes”: para o pecado, para a natureza, para o espírito. “A alma aniquilada, amorosa de Deus. lançando-se ao nada, recebe tudo, mais saber do que o contido nas Escrituras, mais compreensão do que a que está ao alcance da razão, ganha a liberdade perfeita e torna-se capaz de experimentar a ‘paz de caridade’”, explica a teóloga. E “a nobreza, para Marguerite Porete, é também a condição que nos vem do aniquilamento. Mais vale à alma, ela diz, o nada querer em Deus que o bem querer por Deus. A alma aniquilada é nobre porque, pelo aniquilamento, acolhe a obra de Deus nela”.

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