O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, janeiro 15, 2023

ESCREVER MULHER

 


"Aqueles de nós que adoram ler e escrever acreditam que ser escritor é uma confiança sagrada. Significa dizer a verdade. Significa ser incorruptível. Significa não ter medo e nunca mentir. Aqueles de nós que adoram ler e escrever sentem muita dor porque muitas pessoas que escrevem livros se tornaram covardes, palhaços e mentirosos. Aqueles de nós que adoram ler e escrever começam a sentir um desprezo mortal pelos livros, porque vemos escritores sendo comprados e vendidos no mercado — nós os vemos vendendo seus batidos produtos em todas as esquinas. Muitos escritores, de acordo com o estilo de vida americano, venderiam suas mães por um centavo. Manter a sagrada confiança do escritor é simplesmente respeitar as pessoas e amar a comunidade. Violar essa confiança é abusar de si mesmo e causar danos aos outros. Acredito que o escritor tenha uma função vital na comunidade e uma responsabilidade absoluta para com as pessoas. Peço que este livro seja julgado nesse contexto.
Especificamente, o ódio às mulheres é sobre mulheres e homens, os papéis que desempenham, a violência entre eles. Começamos com os contos de fadas, os primeiros cenários de mulheres e homens que moldam nossa psique, ensinados a nós antes que possamos conhecer de maneira diferente. Seguimos para a pornografia, onde encontramos os mesmos cenários, explicitamente sexuais e agora mais reconhecíveis, nós mesmos, mulheres carnais e homens heroicos. Continuamos a mulheristória — a amarração de pés na China, a queima de bruxas na Europa e na América. Aí vemos as definições pornográficas e de conto de fadas de mulheres funcionando na realidade, a verdadeira aniquilação de mulheres reais — o esmigalhar até o nada da sua liberdade, vontade, vida — como foram forçadas a viver e como foram forçadas a morrer. Vemos as dimensões do crime, as dimensões da opressão, a angústia e a miséria que são uma consequência direta da definição polar de papéis, das mulheres definidas como carnais, más e “Outras”. Reconhecemos que é a estrutura da cultura que cria as mortes, violações, violência, e procuramos alternativas, maneiras de destruir a cultura como a conhecemos, reconstruindo-a como podemos imaginar.

Escrevo, contudo, com uma ferramenta quebrada, uma linguagem sexista e discriminatória em sua essência. Tento fazer distinções, sem “história”* como toda a história humana, sem “homem” como termo genérico para a espécie, sem “masculinidade” como sinônimo de coragem, dignidade e força. Mas não consegui reinventar a linguagem."

Andrea Dworkin
Nova York, julho de 1973


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