O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quarta-feira, janeiro 18, 2023

O Cristianismo demonizou a serpente e esmagou-a sob os pés da Virgem,



OFIOLATRIA, OU A DEUSA POR LINHAS TORTAS


A seguinte visão da História escapa aos padrões comuns, aos roteiros aceites como factuais, mais pela força da repetição do que pela sua consistência. Quando nos desviamos dos caminhos por outros tantas vezes andados, acabamos por descobrir novas sendas capazes de nos conduzir a velhos lugares perdidos no tempo. Nem sempre a verdade é óbvia, e menos o é quando encoberta por um autêntico palimpsesto de símbolos e de interpretações. Confiamos quase sempre na palavra escrita, nos textos arcaicos e nos testemunhos mais incríveis tornados banais pela arte do historicismo. Quase nunca questionamos eventos e menos ainda personagens, por mais absurdos ou torpes que se nos afigurem; quase nunca pomos em causa a nobreza dos antigos relatos.
Façamos, agora, este exercício de olhar para o que temos a respeito das origens míticas da humanidade, que embora variem na forma consoante os povos que as narram, focam essencialmente os mesmos conteúdos, ou seja, o criacionismo:
O «Genesis» bíblico, que recorda - entenda-se 'plagia' - a «Epopeia de Gilgamesh», codifica uma história real, compilada e confabulada pelo povo Judeu durante a sua passagem pela Babilónia, entre os séculos VII e VI a.C.. Com efeito, o período que ficou conhecido por ‘cativeiro’ ou ‘exílio babilónico’, iniciado por Nabucodonosor II e terminado por decreto de Ciro II, terá sido decisivo na construção de um modelo social que viria a ser implementado no mundo antigo e, mais tarde, expandido para toda a Europa a partir do Concílio de Niceia, no qual o Cristianismo foi empoderado enquanto nova religião revelada - entenda-se 'inventada' -, desta feita um culto ao Sol e não a Saturno. Sendo questionável o ‘exílio’ em si, como o é todo o conteúdo bíblico, o certo é que foi nas vastas bibliotecas babilónicas, que guardavam o conhecimento dos Sumérios e dos antigos povos da Europa e da Ásia, que alguns judeus letrados obtiveram os alicerces do Judaísmo, a primeira religião constituída por design, precisamente por os seus conceitos terem sido engendrados ou distorcidos a partir de bases teóricas legadas por outros povos e filosofias, entre elas o Zoroastrismo. A história de Moisés, por exemplo, que muitos acreditam ter sido inspirada na do faraó Akhenaton, pelo menos no que toca aos Dez Mandamentos (Decálogo), e que comporta os traços gerais da infância de Sargão I, ela própria uma lenda improvável que circulava nos tempos da Babilónia, terá sido introduzida no passado fictício dos Judeus pelo escriba Esdras e por Neemias, que havia sido copeiro de Artaxerxes da Pérsia. É bem provável que no tempo de Esdras os Judeus não passassem de um conjunto de tribos frequentadoras dos desertos e da região da Judeia, das quais fariam parte os Hicsos, todas elas adoradoras de deuses antigos na forma de serpentes, não cumprindo a lei mosaica, uma vez que esta não existia por ainda não ter sido criada e atribuída a uma personagem fictícia do passado. Todos os passos parecem conduzir ao dito cativeiro babilónico, onde tudo começou. No entanto, apesar de a história dos Judeus anterior a esta data ter sido fabricada com objectivos políticos, dando profundidade e antiguidade a uma religião que não as tinha e a uma etnia que não o era, muito do conhecimento que absorveu radica em premissas espantosamente reais.
O Adão, a Eva e a Serpente
O mito de Adão e Eva mais não será do que uma alegoria que nos narra - se assim o entendermos - os primórdios da manipulação genética que se crê ter tido lugar em diversos momentos da Pré-História da humanidade. Entrando sem temer no campo movediço da especulação e do inusitado, podemos ver Adão e Eva como representantes de um povo neolítico, matriarcal por definição. A serpente do Éden está também longe de corresponder ao animal que lhe dá nome. A figura da serpente, decalcada de uma matriz energética, mais do que material, derivará do próprio conceito de magnetismo ligado às águas, à Lua e à Deusa-Mãe, cujo culto primordial abarcava o mundo antigo na sua totalidade. A palavra grega δαίμων, 'daemon', da qual derivou «demónio», significa tão-simplesmente «espírito», o mesmo que 'ba' para os egípcios, ou «aquele que conhece», muito à semelhança de 'nahash', «serpente» em hebraico, já que esta também pode ser lida como «aquele que decifra», e isto é válido para o grego ὄφις (ophis), «ofídeo/serpente», raiz que está na base de palavras como 'óptica' ou 'oftalmologia', porque a serpente é aquela que vê, tal como a piton é «aquela que sabe». Na mitologia hindu, os Nagas, metade humanos, metade serpentes, são tidos por semi-deuses conhecedores das leis do universo e habitantes do subsolo, mais exactamente a Naga-Loka, onde se encontram os seus palácios encantados, feitos de gemas preciosas. É assim que para o Gnosticismo a serpente era a instructora, porque detinha a visão e o conhecimento, sabia interpretar os símbolos, os códigos genéticos da matriz que era ela própria, Sophia, a serpente energética que escapara do Pleroma. Também em hieroglífico, a cobra remete para um segredo guardado, para o conhecimento em si, para o silêncio.
Se bem observarmos as divindades femininas do panteão sumério, depressa nos apercebemos da persistente relação entre a Mãe primordial, a árvore, ou rama da vida (a Tamara/tamareira), e a Serpente. Ninmah, Nammu ou Ereskigal são alguns exemplos de deusas em cuja iconografia figura a serpente e a palma, a mesma palma que vamos encontrar na iconografia de Endovélico e na dos mártires cristãos, o fitomorfo que nos fala da vitória da vida sobre a morte. Ninhursag, outro teónimo para Ninmah, deusa da fertilidade e do leite, pode ser traduzido por ‘Senhora da Serpente’, identificando uma analogia entre a 'mulher, o leite e a cobra', como na obra do psicanalista e antropólogo J. Gabriel Pereira Bastos.
Serpentes não faltam no mundo antigo pré-cristão, aludindo sempre a algo oculto, que se esgueira por entre as ervas, pois esta é a própria acepção da verdade, coisa esquiva que desejamos conhecer, mas que quase sempre tememos tocar, posto que tocá-la pode bem significar a derrocada de velhas crenças históricas, científicas ou teológicas nas quais a mente encontra conforto. Talvez por isso se diga que a verdade nem sempre é fácil de discernir no meio do artificialismo e da confusão.
No Egipto, onde a Natureza semeou cerca de trinta e quatro espécies deste animal, a cobra é de longe o ser mais vezes representado. De hieróglifo à coroa dos faraós, a uraeus, forma latinizada de 'iaret', «a que se ergue», era por definição a protectora da família real, a que se erguia contra os seus inimigos. Lá, no reino das duas terras, era associada não à Lua, mas ao Sol, era o seu olho flamejante, aquele que tudo conhece. Por observação da mudança de pele a que está sujeita, os egípcios relacionaram-na com a fertilidade e com a ciclicidade enquanto ouroboros, símbolo frequente nos sarcófagos da Época Baixa.
Em suma, o culto da Serpente, seja ela Lilith, Ninhursag, Uadjit, ou qualquer outro nome tomado de empréstimo a uma qualquer mitologia, evoca necessariamente o Neolítico matriarcal e antediluviano. A serpente que ofereceu a Eva o conhecimento seria a guardiã do povo adâmico, a sua protectora, nunca a sua inimiga.
Se quisermos pensar nos Elohim conforme Mauro Biglino os apresenta na sua obra «A Bíblia não é um Livro Sagrado - o Grande Engano», e os imaginarmos enquanto engenheiros genéticos vindos de um qualquer local interdimensional, extraterreno ou mesmo de uma América ou de uma Atlântida que pouco a pouco se afundava no grande mar, há então que reconhecer três grupos presentes no Genesis, os Elohim, as Serpentes guardiãs do conhecimento e os Adâmicos. O povo da Serpente, que liberta a humanidade entregando-lhe as chaves de si própria ao revelar-lhe a sua origem divina, bem como a sua semelhança com os deuses criadores, também eles 'humanos', foi aviltado, e o adâmico punido pela sua ousadia. No «Genesis» são listadas as maldições lançadas por esse bom deus criador sobre o povo criado, ou manipulado. Entre elas contam-se a proibição de comer do fruto da vida eterna, a necessidade de trabalhar para obter sustento, a submissão das mulheres face aos homens e a imposição das dores de parto, que até então as mães, supostamente, e de acordo com o mito, não teriam. Quanto à Serpente libertadora, esta foi condenada a rastejar sobre o seu próprio ventre e a comer o pó dos caminhos. Traduzindo, estes conteúdos simbólicos referem-se à escravatura total e à morte cíclica, à enfermidade do corpo e à sua decomposição. Extravasando do mito para a vida, ainda hoje as serpentes de um Éden que já não o é, continuam a alertar o povo adâmico para a sua condição de escravo do sistema dos Elohim, e persistem em defender a humanidade à qual um dia entregaram o conhecimento.
Esta visão alternativa da História concilia aspectos mitológicos com outros bem tangíveis. A verdade mais depressa se codifica num mito do que se expõe abertamente nas páginas de um livro oficial.
O valor psíquico da serpente molda-se ao do ondular dos rios, dos cursos aquáticos e dos veios freáticos. O seu carácter ctónico e sub-reptício, associado às fendas e covas pelas quais desliza, e ao seu corpo fálico que lhe empresta uma conotação masculina capaz de a elevar à condição de dragão, «aquele que vê» e que transmuta a água somática em fogo espiritual, funde-se ao simbolismo da caverna, do ventre e do magnetismo próprios dos filões metalúrgicos que serpeiam as rochas no interior obducto e misterioso da terra. É aqui que reside o seu mais amplo significado oracular, como em Delfos, e mistérico, pelo contacto com o Ínfero, com o plano dos Antepassados. Talvez seja por isso que até à Idade Média subsistiu em certos lugares da Europa a estranha crença de que os ossos dos mortos se transformavam em serpentes. Linhas ondulantes, ziguezagues, círculos e espirais são as expressões gráficas mais comuns deste ser que ora retrata o electromagnetismo que enforma a matéria, ora se concretiza na criatura enigmática que deambula pela noite subterrânea das origens. Os dólmenes de Zedes, de Sales, do Padrão ou de Escariz I, bem como o complexo rupestre do Vale do Tejo, o penedo do cobrão ou o menir do Monte da Ribeira, são exemplos de arqueossítios relacionados com a ofiolatria, onde podemos observar tais motivos serpentiformes alusivos ao fluxo da vida e à sua constante renovação.
Cobra, cobre e corvo intercambiar-se-iam por assonância no falar de outrora. Com frequência encontramos topónimos mineiros ligados ao corvo ou à cobra, como Torre de Moncorvo, Cobro ou Neves-Corvo. As minas de Vipasca, hoje Aljustrel, exploradas no tempo de Roma são outro exemplo. O seu nome antigo, claramente derivado da raiz *vip-, «víbora», comporta um sufixo tipicamente lígure, *-asca, indicando nas landes alentejanas a possível presença deste povo mineiro, ele próprio habitante do subsolo, de acordo com as lendas.
O Cristianismo demonizou a serpente e esmagou-a sob os pés da Virgem, subvertendo o profundo significado de ambas, ligado quer à fertilidade do corpo, quer à criatividade da mente. A nova religião, forjada sob o poder de Roma, seria o golpe final no matriarcado, pois é disto que se trata a serpente, nunca de um animal, menos ainda de um arauto das trevas. A imagem da Virgem, ou de um arcanjo, que subjuga ou neutraliza a cabeça da víbora, fala-nos, afinal, da subjugação ou da neutralização do espírito humano, daquele que sabe, daquele que tudo vê - o olho de Hórus, ou o sistema límbico, hoje em dia cada vez mais comprometido pela adição de flúor e de outros químicos à água, aos alimentos, à atmosfera e aos produtos de higiene. Um povo cuja criatividade e capacidade de percepção extra-sensorial foram neutralizadas, é um povo fácil de manipular e de gerir em proveito do sistema patriarcal, fundado no medo e na culpa. Essa ‘Lilith’ da árvore do conhecimento corresponde-se com a consciência da humanidade prístina, a sua pineal, o ápice ligado à espinal medula, ao sistema designado por reptiliano (Kundalini), que transporta informação entre o Inconsciente, ou sistema nervoso entérico, e o Consciente, ou neocórtex. Em poucas palavras, a Serpente é a Intuição, onda vibrátil que materializa na mente física as percepções elusivas que emanam do campo electromagnético em permanente contacto com o Cosmos.
Clara fica a noção de que a Igreja e o patriarcado, seja ele judaico, cristão ou islâmico, religiões artificiais que partilham as mesmas bases políticas disfarçadas de cultos astrais, foram os motores do conflito social que opôs homens e mulheres ao longo da História, escravizando ambos na renúncia do divino que lhes é intrínseco e da sua verdadeira espiritualidade. Esmagada, culpabilizada, amaldiçoada e, por fim, masculinizada, a mulher foi sendo moldada negativamente pela astúcia do simbolismo, a mesma que transformou a Serpente matriarcal numa pérfida criatura habitante dos ‘sórdidos esconsos’ do submundo. Se queremos destruir ou submeter um povo, devemos começar por destruir ou subverter os seus símbolos, fazer com que sejam odiados e repudiados - veja-se o caso típico da suástica. Assim, a Serpente passou a ser conotada com o Mal e com a mentira, num volte-face que nos faz pensar na acção dos fact-ch&ck&rs de outrora, que decidiam a verdade de acordo com as narrativas vigentes em cada época. A desacreditação e a humilhação sempre foram usadas na construção do paradigma 'correcto', daquele que os senhores do jogo nos incitam a seguir. Capaz de colocar em risco a palavra instituída e o status de uma sociedade edificada sobre mentiras, o conhecimento do espírito-serpente é tabu, assunto digno de escárnio.
Em «Lilith, a Mulher Primordial», Rosa Leonor Pedro avança profundamente nestas e noutras questões ligadas ao papel da Mulher e à sua instrumentalização nas mãos patriarcais de um sistema corrupto, fundado na falsidade e na distorção:
«Lilith é a Rainha do tempo, fora do tempo, e pouco tem a ver com essas ideias maléficas e monstruosas que dela projectaram os homens tementes de Deus Pai. (...) Ela está para lá de toda a dualidade, do Bem e do Mal. Ela nunca foi o macho nem a fêmea animal, porque Ela é a Essência feminina e o Gérmen da mulher futura, da mulher que era para ser no início e não foi. Ela é o gérmen da mulher integral, e o que ela será já está inscrito no nosso ADN. Ela não morreu, porque renasce de si mesma, inteira como a Fénix. Renasce na união das duas mulheres cindidas e nas consciências de feminino e do masculino, e para lá dos dois.» pg. 83.
Ctnoniana, telúrica, cósmica, a Serpente é um fluido universal, que ora se enrosca numa acepção feminina enquanto espiral magnética, ora se projecta em onda hertziana, masculina e linear. Ela é isto e aquilo, é o Todo e cada uma das partes, ela é o Infinito, tempo e espaço na ininterrupta trama da existência.
In Caderno de Ilurbeda

Isabella Garneche


Sem comentários: