Então lembramos. A primeira hora chega e, como se criássemos olhos que vêem, que finalmente vêem, percebemos como o jogo de luz e sombra, de fora e dentro, de alto e baixo, sustentam a ilusão de uma identidade-eu, dão suporte à ilusão da separatividade. O jogo dos opostos mantém a identidade eu, lhe empresta motivos, lhe fornece esperanças, cria sentidos onde nada há. Mas os opostos são a sombra da unidade perdida, implodida sobra si mesma, buraco negro colapsado, a qual explode e forma um universo de pares invertidos. A identidade eu se alimenta de seu poder organizador. Todo corpo é substituído por algo mecânico, padronizado, previsível. O segredo dos quânticos nunca será matéria da mecânica. O corpo é alma que se vê, se toca, se sente e se encontra. E quem é capaz de dizer o que é um corpo? Isso que se vê, que se move feito animal é organismo, matéria organizada, parametrizada, matematizada. O corpo é movimento, calor, som, luz, atração e repulsão, inteligência, ação criadora. Num organismo os opostos são identificados. Num corpo os opostos se resolvem.
Vejam as instituições e seus rebanhos consolados: o bom e o mau estão separados pelo cadáver que macula a cruz do mundo. Agora olhe novamente: num corpo, tanto o bom quanto o mau morrem ao lado da imagem que vivifica a cruz e que ganha vida dela. No corpo toda a ilusão é vencida e a morte é sua companheira: a que dissolve esta mesma ilusão. Por isso, no corpo, morre o bom e morre o mau. Sim, há uma dimensão insuspeita aos olhos dos medíocres, pois o que está no meio, em meio a esta dimensão inaudita, não abole a ilusão da separação entre coisas, mas abole a ilusão da separatividade mesma. Explico: a ilusão não é a da separação entre uma coisa e outra, mas a ilusão é a ilusão da própria separatividade! Veja se me compreende: o bom e o mau são sempre homicidas. É a mesma história dos cachorros dentro do índio contada por brancos, ainda que índios, que se pretendem sábios: morre-se por locura de maldade ou de bondade. Tanto o bom quanto o mau são sempre homicidas. Lembre-se: as forças são gêmeas. Lembre-se dos bufões do teatro de Pinóquia: ao final eles trabalham juntos, se tornam companheiros daquela que está no meio, ou como diria Apolônio de Tiana, se enrolam como serpentes ígneas em volta do caduceu e, assim como os demônios, também cantam louvores a Deus. Entenda, compreenda, experimente: que se diga que as coisas não são separadas ainda é pouco, muito pouco, pois a verdade é que não há separação. Mas o homem preso nesta ilusão acredita que falamos da separação entre coisas. A mente racional, esta criatura cultural, mascara sua ignorância com belas palavras que escondem outras. Entender, compreender, experimentar que não há fora nem dentro não é tarefa para a mente, essa gerente organizadora. Mas aqui estamos falando para aqueles que possuem mãos, pés e cabeças sangrando. Essas horas não podem ser simuladas ou empreendidas por homens sem vontade, sem autonomia, sem amor. Atenção: matar o eu não é matar aquilo que produz o eu. Por isso a segunda hora vem como um raio e um trovão que aniquilam esse produtor, essa mentalidade reticente, sistemática, que atua ora a serviço de homicidas indulgentes, ora a serviço de homicidas intransigentes. A segunda hora mostra o fio da navalha. Ela é ígnea como um brilho crepuscular abrindo uma fenda no tecido do mundo. Quem segue esse caminho, quem põe os pés na matéria que habita essa fenda, faz dos homicidas companheiros. Pode-se então dizer que é literalmente despregado. Então, aquilo que antes era um jogo de pares invertidos se torna uma dança quíntupla. Não é Mani, o apóstolo da luz, que fala do homem original e de seus cinco companheiros? Quem é este que tem cabeça, mãos e pés? Pois esta é a segunda hora.
2 comentários:
Os textos são bons, vamos partilhar...rs...
Beijinhos Rosa...
Ok. Nem pedi autorização aos autores nem sei o nome...espero não haver problema..
beijinhos
Enviar um comentário